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Isolamento voluntário e críticas à desigualdade movem 'Round 6' e outras séries badaladas

'White Lotus' e 'Nove desconhecidos' também têm confinamento e discussão sobre privilégios
Cena de Round 6, da Netflix Foto: Divulgação
Cena de Round 6, da Netflix Foto: Divulgação

Do interior dos Estados Unidos até a Coreia do Sul, passando pelo Havaí, os seres humanos estão em crise. Afinal, os laços sociais e o sistema econômico do qual fazem parte parecem estar em frangalhos. Pelo menos esse é o cenário de três das produções mais badaladas da temporada. As minisséries “ White Lotus ” (HBO) “ Nove desconhecidos ” (Prime Video) e “ Round 6 ” (Netflix) colocam na tela cidadãos das mais variadas classes confinados, em confronto com privilégio, exploração, preconceito e falência financeira e moral. Os ambientes podem ser idílicos ou aterrorizantes, mas quanto mais isolado, melhor.

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Na produção da HBO, um resort no Havaí é destino de férias de representantes da nata do privilégio branco. Logo no primeiro episódio, alguém aparece morto, e a história se desenrola em flash back. Na da Amazon, dona do Prime Video, o mistério fica na conta das motivações de Masha, a personagem de Nicole Kidman, dona do spa que reúne classes, digamos, mais heterogêneas. Os brancos abastados se “misturam” com uma família de classe média (branca) que teve desconto na estada e um negro milionário que ganhou na loteria. Já o thriller sul-coreano “Round 6” aglomera centenas de endividados. De operador do mercado financeiro falido a bandido jurado de morte, ninguém tem perspectiva para o dia seguinte, por isso resolvem entrar num jogo misterioso. Só que quem perde, morre. Literalmente.

Embutidas em narrativas de mistério, as duas produções americanas, principalmente a da HBO, fazem suas críticas sociais sob o prisma do capital. Já a sul-coreana bate no neoliberalismo com a história de personagens que mal sobrevivem no sistema vigente de distribuição de riqueza e individualismo exacerbado. O confinamento, apesar de voluntário, é um ponto crucial, que dá um tom quase de reality show ficcional às narrativas.

— São formas diferentes de abordar a questão do isolamento, e é interessante ver tudo isso no momento em que nós, audiência, estamos confinados — diz Melina Meimaridis, doutora em comunicação pela UFF e especialista em ficção seriada televisiva. — Duas delas têm espaços idealizados (o resort e o spa) , com uma visão mais romantizada sobre o estar isolado, embora os personagens também tenham questões e a vida deles não seja totalmente bela. “Round 6” é uma crítica social mais profunda.

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Cena de Round 6, da Netflix Foto: YOUNGKYU PARK / Divulgação
Cena de Round 6, da Netflix Foto: YOUNGKYU PARK / Divulgação

Pegos de supresa

No catálogo global da Netflix desde o último dia 17, “Round 6” já é primeiro lugar no ranking da plataforma em mais de 70 países, inclusive no Brasil e nos Estados Unidos. Segundo Ted Sarandos, CEO de conteúdo da empresa, ela tem tudo para desbancar “Bridgerton” como o conteúdo mais visto em todo o mundo. “Não prevíamos isso, em termos de popularidade global”, disse Sarandos, na última segunda-feira, durante o Vox Media’s Code Conference.

A minissérie, com nove episódios de cerca de uma hora cada, conta a história de um grupo de 456 pessoas à beira da falência que aceitam a proposta de participar de um jogo misterioso em que o vencedor leva 45,6 bilhões de wones. Confinados numa ilha, mal alimentados e monitorados 24h por dia, eles são obrigados a participar de brincadeiras inspiradas em jogos infantis (tipo “batatinha frita 1,2,3”). Quem perde, no entanto, paga com a própria vida — o que garante à série cenas de extrema violência e, inclusive, dificultou sua produção ao longo do tempo. “Eu estava lendo muitos quadrinhos e terminei o roteiro em 2009. Na época, parecia muito estranho e violento. Algumas pessoas acharam que era um pouco complexo e não comercial. Não fui capaz de obter investimento suficiente”, disse Hwang Dong-hyuk, que criou a história em 2008.

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Mas ele tem sido acusado de copiar produções como o filme japonês “As the Gods Will”, de 2014, e “Battle royale”, um romance japonês de 1999, que fala sobre um grupo de alunos obrigados a lutar, um contra o outro, até a morte. Hwang Dong-hyuk admite ter lido a obra.

Especializada em estudos da onda coreana, a doutoranda em comunicação Daniela Mazur acha que o sucesso da série é uma combinação de fatores, que passa obrigatoriamente pelo momento de crise global.

— Períodos incertos demandam ou narrativas nostálgicas, de voltar para um lugar de segurança, ou abrem um leque para obras distópicas, como essa. “Round 6”, além de ser uma produção bem construída e estar dublada numa plataforma global, trata de questões profundas da sociedade neoliberal. As pessoas estão se matando para sobreviver.

Isolados na forma e no conteúdo

A julgar pelo ambiente, nada pode dar errado no resort White Lotus ou no spa Tranquillum House, onde se passam as minisséries “White Lotus” (HBO) e “Nove desconhecidos” (Prime Video), respectivamente. Natureza, sol, luxo e funcionários prestativos prontos para dar aos hóspedes toda a paz do isolamento que só o dinheiro aparentemente pode comprar. Os personagens estão longe do caos de suas vidas diárias, mas quem disse que o confinamento é garantia de sossego?

Nicole Kidman em cena de 'Nove desconhecidos' Foto: Vince Valitutti / Hulu
Nicole Kidman em cena de 'Nove desconhecidos' Foto: Vince Valitutti / Hulu

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As duas séries de suspense chamaram a atenção por trazerem à tona conflitos e críticas sociais num ambiente de isolamento dos cenários paradisíacos. A conjuntura fora de cena ajudou a firmá-la nos catálogos. “White Lotus” teve um enredo encomendado a partir da necessidade pandêmica de filmagem em confinamento. “Nove desconhecidos”, apesar de baseado na obra da escritora Liane Moriarty, se encaixou nessa demanda.

Para Melina Meimaridis, doutora em comunicação pela UFF e especialista em ficção seriada televisiva, havia uma certa rejeição, na TV americana antes da pandemia, a obras cuja premissa era total isolamento.

—Era considerado monótono demais — diz ela, que ainda acha que esse tipo de produção só dá certo quando se trata de poucos capítulos. — “White Lotus” funcionou porque são seis episódios, se não ficaria cansativo, tudo igual.

A produção da HBO foi considerada um sucesso de crítica e público e já foi renovada para a segunda temporada, que se passará em outro hotel da rede White Lotus com hóspedes diferentes. Já “Nove desconhecidos”, cujo último dos oito episódios entrou na plataforma de streaming na última sexta-feira, não recebeu críticas tão favoráveis e ainda não foi renovada.