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John Malkovich vive um Hercule Poirot em crise em série dirigida por brasileiro

Polêmica no Reino Unido, 'The ABC murders' estreia no Globoplay nesta sexta-feira
'The ABC murders': com John Malkovich, série apresenta passado de Hercule Poirot que não faz parte dos livros de Agatha Christie Foto: Ben Blackall / Divulgação
'The ABC murders': com John Malkovich, série apresenta passado de Hercule Poirot que não faz parte dos livros de Agatha Christie Foto: Ben Blackall / Divulgação

Esqueça o exuberante bigode pontudo para cima e a gravata borboleta. Na nova encarnação de Hercule Poirot, o famoso detetive de Agatha Christie, o americano John Malkovich ostenta um cavanhaque e roupas sóbrias. Envelhecido e acuado, o antes sempre impecável Poirot ainda é traído pela tintura negra que usa para esconder os fios brancos. É o jovem inspetor Crome (vivido por Rupert Grint, o Ron Weasley de “Harry Potter”, em um raro papel dramático), substituto do veterano inspetor Japp, que percebe (e debocha) da gafe.

A aparência do detetive é apenas uma das várias liberdades tomadas por “The ABC murders”, adaptação da BBC do livro “Os crimes ABC” que chega hoje ao Globoplay. Composta por três episódios, a minissérie é escrita por Sarah Phelps, roteirista veterana da TV britânica que tem se dedicado a revitalizar clássicos de Christie.

— Dentro desse roteiro, Poirot não é um dândi querendo mostrar uma espécie de juventude tardia. Ele é um cara para quem o tempo passou e ele simplesmente aceita que não é mais aquele personagem celebrado da sociedade londrina — explica o paulistano Alex Gabassi, de 51 anos, escolhido para dirigir a minissérie.

Fãs de Agatha Christie ainda vão poder perceber outras diferenças na série em relação ao original. A maior delas é uma revelação sobre o passado do detetive belga antes de chegar à Inglaterra, apresentada nos momentos finais do último episódio. Além disso, o personagem Hastings, o “Watson” de Poirot, foi cortado da trama. Há ainda um deslocamento de tempo, de 1936 para 1933. Tudo isso para retratar o protagonista como um estrangeiro isolado em tempos de ascensão da xenofobia e do fascismo na Inglaterra — temática quente em um presente marcado pelo Brexit e pelo fortalecimento da extrema-direita.

>— A Sarah (Phelps) trouxe a trama para 1933 para criar um espelhamento com o que estava acontecendo na Alemanha. É o ano em que Hitler é nomeado chanceler e, no Reino Unido, a British Union of Fascists (partido britânico fascista fundado por Oswald Mosley) tem seu momento. Isso reflete o que está acontecendo hoje — diz Gabassi.

John Malkovich e Alex Gabassi no set de 'The ABC murders', da BBC Foto: MATT SQUIRE / Divulgação
John Malkovich e Alex Gabassi no set de 'The ABC murders', da BBC Foto: MATT SQUIRE / Divulgação

O diretor conta que, ao criarem esse subtexto, Poirot acaba sendo uma das vítimas.

— Quisemos deixar bem claro que ele se sente um outsider — detalha ele, explicando que é também por essa vontade de passar despercebido diante da onda xenofóbica que Malkovich apresenta um sotaque belga menos caricato do que o de adaptações anteriores.

Os acréscimos do roteiro se casaram com a vontade do brasileiro, radicado em Londres desde 2015, de reinventar Poirot. Embora tenha crescido com os livros de Christie que sua avó e sua tia recebiam por um clube de assinaturas, no fim dos anos 1970, Gabassi nota que o fato de não ter a mesma relação que os britânicos com o detetive também o ajudou a se sentir mais livre para intervir no cânone do personagem.

— Eu não tinha nenhuma ligação cultural como eles têm com Poirot. Aqui, há uma série que passou durante anos com o David Suchet (“Agatha Christie’s Poirot”, exibida de 1989 a 2013 no ITV), que é um ator muito bom. Mas falei de saída que nunca tinha visto o Suchet, nem tinha a intenção, e achava que a gente podia mudar o personagem radicalmente.

As escolhas ousadas também foram abraçadas por Malkovich. Após aceitar o convite, o ator convidou Gabassi para passar três dias conversando sobre o que fariam na série na sua casa no sul da França, onde o ator e a mulher, a italiana Nicoletta Peyran, fazem seu próprio vinho.

— É maravilhoso dirigir o John. As pessoas acham que esses atores muito conhecidos são divas, e ele é totalmente o contrário. É muito amável, inteligentíssimo, e nunca vai fazer um take igual ao outro, o que para mim, era um prazer. Nós dois somos muito detalhistas com a disposição dos objetos na cena, e isso acabou virando piada no set. Ele disse que ele era louco, mas eu era ainda mais — conta o brasileiro.

As escolhas de “The ABC murders” geraram muita bafafá na imprensa britânica — o que também resultou em bons números de audiência. O episódio de estreia foi o programa mais visto do último Boxing Day (feriado celebrado pelos britânicos em 26 de dezembro), com 7,6 milhões de espectadores de acordo com a Barb, entidade que mede a audiência no Reino Unido.

Um resultado e tanto para Gabassi, que, na juventude, antes de retornar a Londres em 2015, chegou a trabalhar em restaurantes da capital inglesa com o objetivo de juntar dinheiro para estudar cinema.

Um resultado e tanto para Gabassi, que, na juventude, antes de retornar a Londres em 2015, trabalhou em restaurantes da capital inglesa com o objetivo de juntar dinheiro para estudar cinema.

— Adoraria poder fazer no Brasil o que eu faço aqui, e provavelmente isso vai acontecer em breve, com todas essas séries que estão surgindo. Por outro lado, me sinto bem aqui. A TV britânica tem algo muito bom, que é fazer as séries nos tamanhos que a história permite, em vez de ter que preencher episódios — ressalta o brasileiro.