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Cultura TV

'Literalmente todo mundo disse não' diz Bruno Barreto sobre série que aborda universo LGBT

Diretor de 'Toda forma de amor', cineasta diz que não se vê obrigado a escalar transgêneros para viverem personagens trans e comenta tentativa de derrubar edital com séries dentro da mesma temática
Bruno Barreto durante as gravações de 'Toda forma de amor', com a atriz Gabrielle Joie ao fundo Foto: Filipe Vasconcelos Vianna/Divulgação
Bruno Barreto durante as gravações de 'Toda forma de amor', com a atriz Gabrielle Joie ao fundo Foto: Filipe Vasconcelos Vianna/Divulgação

RIO - O ano anda movimentado para Bruno Barreto : enquanto estreia a série “Toda forma de amor” , no Canal Brasil , na próxima sexta-feira, às 22h30, o diretor ainda tem dois novos projetos para lançar: a minissérie “O hóspede americano”, sobre a excursão do ex-presidente americano Theodore Roosevelt e o Marechal Cândido Rondon fizeram em 1913, e uma série documental sobre trabalho escravo no século XXI, ambos para a HBO. O cineasta de 64 anos ainda esteve na última quarta-feira em Brasília, para a primeira reunião do Conselho Superior de Cinema (CSC) , depois de um 2019 marcado por tensão nas relações entre o setor audiovisual e o governo federal.

— Estou muito otimista. A reunião foi ótima — diz ele.

Na entrevista a seguir, Barreto fala mais sobre “Toda forma de amor”, série com Guta Ruiz e Romulo Arantes Neto . Na trama, Romulo é Daniel, um filho de pastor que se salva da falência ao abrir uma boate voltada para o público LGBT. É lá que ele conhece a DJ transgênero Marcela (Gabrielle Joie) . Enquanto acompanha a vida amorosa desses e outros personagens que fogem ao padrão heteronormativo em suas relações, a série também é entremeada por um suspense em torno de assassinatos em série de mulheres trans em São Paulo. Barreto ainda comenta a tentativa de barrar um edital da Ancine que contemplava produções com temática LGBT e revela como descobriu Joie, atriz trans que hoje está no ar também na novela das 19h, “Bom sucesso” .

A série fala sobre histórias de amor, mas ao mesmo tempo, assassinatos pairam ao redor. Para você, o que é essa série?

Eu não queria pregar para convertidos. Não é uma série LGBT. Meu desafio era contar essa história para o maior número possível de pessoas. Todo mundo quer amar e ser amado, e todo mundo tem medo. Então tem essa história policial, mesmo, de quem é o serial killer, para criar um suspense. A série tem elementos de dramaturgia universal, que atrai liberais e conservadores.

Mas dá para quebrar preconceito com uma série de TV? Hoje, as pessoas já não associam uma obra com um “lado” antes mesmo de ver?

Concordo, por isso que o marketing é importante. O público LGBT já vai ver. O grande desafio é fazer com que as pessoas que não iriam querer vejam e gostem. A gente não se identifica só com pessoas fofinhas, politicamente corretas, que a gente gostaria de ser. Tem uma hora, na série, que você se identifica até com o pastor, com o secretário de Direitos Humanos, com a mulher do cara que gosta de se vestir de mulher.

A série foi gravada em 2017. Por que a demora para o lançamento?

Ela foi gravada em 2017 e logo depois eu fiz “O hóspede americano”, que era um projeto meu, pessoal. Pela primeira vez na vida, coloquei dinheiro do meu bolso para fazer o roteiro. Então era uma série que eu não podia adiar, pela disponibilidade do ator americano (Aidan Quinn, que vive Theodore Roosevelt) . Quando ela aconteceu, tive que interromper a pós-produção do “Toda forma de amor”.

Nesse meio tempo, muita coisa aconteceu no Brasil e a pauta LGBT ganhou um senso de urgência. Como isso interfere no lançamento?

O timing é até melhor do que se a série tivesse sido lançada há um ano atrás, porque o assunto está mais na pauta do dia. Novamente, na minha opinião, não é sobre LGBT, porque isso não é um tema. Não é uma série militante, é uma série que conta um história. Não tem nada ideológico, até porque eu não faço nada assim, acho que a arte tem que estar acima de qualquer ideologia.

A série foi contemplada por um edital da Ancine na época. Depois disso, houve uma censura a um edital com séries LGBT...

Elas não foram censuradas. Foi uma tentativa, porque a Justiça já liberou.

Mas correram o risco de não existir. Como realizador, como você vê isso?

Eu sou contra qualquer tipo de censura, e já sofri isso na pele. Fiz filme na ditadura militar. Mas, naquela época, você fazia o filme que queria. Não havia censura prévia. A censura era quando o filme ia ser lançado, e só dentro do Brasil. “Dona Flor e seus dois maridos” saiu aqui, pela primeira vez, com cortes, mas lá fora passou na íntegra. Não estou dizendo que era melhor ou pior, só estou dizendo como era. Agora, não vou dizer que foi uma tentativa, mas houve uma quase censura prévia, negando financiamento a séries que tratavam de certos temas. Mas a Justiça vetou. Está resolvido o assunto. Então prova que vivemos numa democracia. Não acho surpreendente: o governo que temos é conservador, e se parte do financiamento é do governo por renúncia fiscal, o governo pode tentar o que quiser tentar. Mas a sociedade não deixou. Não acredito que vão insistir no mesmo erro.

Você acha então que foi um ápice de tensão que já foi superado?

Eu acho o seguinte: o brasileiro tem muita dificuldade em aceitar a alternância de poder. A nossa cultura corporativista tem muita dificuldade em aceitar que numa democracia às vezes vai ter uma pessoa que não te identifica, que você acha que não te representa, mas representa um grupo grande de pessoas no Brasil. Então você tem que aceitar isso. E eles podem tentar fazer o que tentar fazer, o cara está no poder. Mas as instituições são fortes, como provaram ser, a Justiça foi e negou duas vezes. E pronto, encerrou o assunto. As séries vão ser feitas.

A segunda temporada de ‘Toda forma de amor’ já está confirmada?

Não tem nada certo, mas acho que vai acontecer. Quando a gente começou essa série, ninguém queria falar desse assunto. Literalmente todo mundo disse não, menos o Canal Brasil. Isso lá em 2016. Hoje, seria completamente diferente. É impressionante como as coisas mudam rápido.

Vocês tiveram alguma consultoria para abordar a diversidade de gênero e sexual? Havia, por exemplo, uma mulher trans na sala de roteiristas?

Não, era só o Marcelo (Pedreira, criador da série) . Ele já tinha feito uma peça, “A inevitável história de Letícia Diniz” e um curta-metragem também, em que as personagens principais eram travestis. Ele tem conhecimento do assunto que vem lá de trás. E fomos montando o elenco... Eu não vou me submeter nunca a essa camisa de força do politicamente correto de que, se tem um personagem que é trans, tem que ser feito por uma trans. Sou completamente contra isso. Porque se você é trans, também não quer dizer que tem fazer uma trans. Atuar é um ofício. Eu disse para o Canal Brasil que não conhecia uma atriz trans com esse perfil da personagem, com uma voz totalmente feminina, totalmente passável, como se fala. Eles pediram para eu pelo menos testar. Se fosse outros, como um canal a cabo muito famoso, eles te obrigariam a escalar uma trans para viver uma personagem trans, não tem saída. Então, fui testar. O Marcelo começou a pesquisar youtubers que falam sobre transição de gênero. Ele mandou uma opção para mim, mas descobri uma outra que achei melhor. Localizamos ela, a Gabrielle Joie, que tinha 18 anos na época e estava trabalhando numa loja da Oscar Freire. Escalei e ela trouxe muito para a personagem, para responder a sua pergunta. Tem cenas na série que não estavam no roteiro, e vieram dela, de histórias que ela nos contou e fomos incorporando. Então não precisava de uma roteirista trans, ela trouxe muito.