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Cultura TV

‘O Caso Evandro’ é, em sua busca por verdade, uma das melhores séries disponíveis hoje no Brasil

Minissérie em oito episódios parte de desaparecimento de menino no Paraná, em 1992, para ilustrar mazelas do Brasil como corrupção, preconceito religioso, violência policial, voyeurismo, tortura, prisões injustas e até mesmo fake news
Cena da minissérie 'O Caso Evandro' Foto: Divulgação
Cena da minissérie 'O Caso Evandro' Foto: Divulgação

O Brasil de 2021 se acostumou tanto a lidar com versões, narrativas, vieses e a relativização da verdade, que parecia improvável que as idas e vindas de um crime de 30 anos atrás gerasse alguma surpresa. Mas a primeira metade de “ O Caso Evandro ”, série documental de oito episódios, com quatro já disponíveis na Globoplay , é um choque — não apenas pelos desdobramentos a partir do assassinato extremamente cruel de um menino de 6 anos, mas principalmente pelo quebra-cabeça de suspense criado pela produção. É lógico que a parte final pode derrapar, mas o que se viu até aqui indica que estamos diante de uma das melhores séries oferecidas no streaming brasileiro.

Da ambientação e do ritmo conduzidos pelos diretores Aly Muritiba e Michelle Chevrand, às lacunas cuidadosamente preenchidas no roteiro de Angelo Defanti, Arthur Warren, Ludmila Naves e Tainá Muhringer, “O caso Evandro” é perturbadoramente instigante. É um efeito similar que tiveram os ouvintes do podcast “Projeto Humanos — O Caso Evandro” (2018), do professor e escritor Ivan Mizanzuk, no qual a série da Globoplay se baseou. O próprio Ivan é creditado pela pesquisa e colaboração no roteiro, além de ser um entrevistado recorrente nos episódios.

A produção intercala entrevistas com um vasto material de arquivo e também com boas encenações de atores para reproduzir o que aconteceu a partir de 6 de abril de 1992, na cidade de Guaratuba, Paraná.

Corpo sem vísceras

À distância, na memória de quase 30 anos, o caso parece ser apenas um crime bárbaro. Mas o sequestro e a morte de Evandro Ramos Caetano, cujo corpo foi encontrado desfigurado, sem vísceras e órgãos, envolveu direta e indiretamente tanta gente de posições sociais distintas e reuniu tantos elementos, que fica até difícil enquadrar a história numa única categoria das mazelas brasileiras.

A lista é grande: sequestro, corrupção, preconceito religioso, violência policial, voyeurismo, tortura, prisões injustas e até o que a gente hoje chama de fake news — não havia redes sociais na época, claro, mas gente espalhando lorota com efeitos nocivos é tão antigo quanto a Bíblia.

“O Caso Evandro” é perfeito em revelar esses elementos gradativamente, embaralhando a percepção do espectador. Começa como uma série policial, depois vira suspense, aí vem o terror, até que, ao unir as pontas, a gente percebe que ela trata de uma parte doente do país. Se hoje parecem absurdos comentários ditos por certas figuras públicas, naquela época já havia subsecretário de Segurança defendendo que suspeitos fossem soltos em praça pública para serem vítimas da “justiça” popular.

Descrição de Estupro

Ao posicionar suas peças ao longo dos episódios, a série sempre deixa uma surpresa para o momento seguinte. Por exemplo, na sombra da investigação pela morte de Evandro, surge a disputa que opunha o então governador do Paraná, Roberto Requião (hoje senador pelo MDB), e o poderoso deputado estadual Aníbal Khury (morto em 1999, quando ocupava pela quinta vez consecutiva o cargo de presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Paraná).

Noutra ocasião, revela-se que os suspeitos foram levados pela polícia para um mansão que pertenceu a Alfredo Stroessner, ditador paraguaio acusado de violentar crianças e que se exilou no Brasil até sua morte, em 2006.

Os quatro primeiros episódios de “O Caso Evandro”são abundantes desses detalhes que enriquecem a trama. A gente até quase esquece que no centro de tudo está um menino chamado Evandro, tamanha a quantidade de crimes e absurdos que são cometidos após seu assassinato.

Um desses é narrado por uma personagem, de frente para a câmera, numa cena muitíssimo forte em que ela conta em detalhes o estupro que sofreu. É o clímax desta primeira parte da série, um que nos afunda ainda mais na reflexão sobre nossa falência moral.

Assim, antes de buscar a verdade, a equipe de “O Caso Evandro” compreendeu bem que era precisa desacreditar versões — desafio que, infelizmente, persiste no país.