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'O mundo do Instagram e de aparências foi muito sedutor', diz Shonda Rhimes, criadora da série 'Inventando Anna'

Condenada à prisão por golpe de U$ 200 mil, russa que se passava por milionária alemã inspirou produção disponível na Netflix
Julia Garner como a falsa milionária Anna Delvey na série da Netflix Foto: AARON EPSTEIN/NETFLIX / AARON EPSTEIN/NETFLIX
Julia Garner como a falsa milionária Anna Delvey na série da Netflix Foto: AARON EPSTEIN/NETFLIX / AARON EPSTEIN/NETFLIX

Os óculos Céline, as sandálias Gucci, a capinha de celular personalizada e o cartão American Express Platinum não deixavam dúvidas: a alemã Anna Delvey tinha muito dinheiro. Nos melhores restaurantes e festas mais badaladas de Nova York, ela contava sua história de vida: era filha de um magnata e dona de um fundo de 60 milhões de euros, que seria liberado assim que completasse 25 anos. Quem iria duvidar?

Em 2017, porém, a Procuradoria de Manhattan descobriu que Anna Delvey nunca existiu. A jovem elegante era russa, se chamava Anna Sorokin e era filha de um caminhoneiro. Com desculpas esfarrapadas (“o sistema do cartão de crédito caiu”) e falsificações, ela conseguiu dar golpes em bancos, hotéis e até numa empresa de aviões particulares, num total de US$ 200 mil. Ficou dois anos presa e, em 2019, foi condenada. Na época, isso estarreceu e envergonhou o high-society nova-iorquino.

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Agora, as duas Annas voltam à cena com o lançamento da minissérie baseada em fatos “Inventando Anna”, que entrou na Netflix na última sexta-feira. A história também chega ao Brasil no livro de mesmo nome pela editora Rua do Sabão, escrito por Rachel DeLoache Williams, amiga que caiu na lábia da farsante.

Apesar de ter recebido um título igual ao da Netflix, a obra, publicada nos Estados Unidos em 2019 como “My friend Anna” (“Minha amiga Anna”), não inspirou a showrunner Shonda Rhimes, criadora do projeto para a plataforma de streaming. No entanto, ambos os produtos exploram o fascínio do público com o modus operandi dos picaretas. Prova disso é o sucesso de “O golpista do Tinder” , filme mais visto na Netflix desde a estreia, no último dia 2.

— As pessoas ficam seduzidas por essas histórias pelo mesmo motivo que eu me senti atraída por Anna. Existe algo ambicioso, encantador de um jeito mágico— diz Rachel Williams, por chamada de vídeo, que é retratada na série, mas não deu entrevistas para o projeto. — Consumir esses conteúdos é como ver um ilusionista realizando um truque. Você quer ver para saber como ele faz.

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Para revelar a mágica de Anna em nove episódios, Shonda, nome por trás de sucessos como “Grey’s Anatomy” e “Scandal”, se baseou numa matéria escrita pela jornalista Jessica Pressler em 2018. E escalou Anna Chlumsky, de “Veep”, para viver a repórter que tenta escrever o perfil da falsária, interpretada por Julia Garner, de “Ozark”.

—Anna tinha o dom de fazer as pessoas se sentirem a melhor versão delas mesmas. O mundo do Instagram e de aparências foi muito sedutor — disse Shonda, em entrevista por Zoom.

Anna Sorokin em seu julgamento, em 2019: negociação com a Netflix Foto: STEVEN HIRSCH / NYT
Anna Sorokin em seu julgamento, em 2019: negociação com a Netflix Foto: STEVEN HIRSCH / NYT

De fato, a jovem é a caricatura de uma geração mimada que encontra nas redes sociais o ambiente para colocar o narcisismo em prática. Tanto que, quando saiu da prisão em fevereiro de 2021, logo voltou a postar. Hoje, está detida pela imigração americana e aguarda deportação.

— Ela incorpora a ideia de que você precisa fingir até conseguir— diz Shonda. — Talvez, se ela fosse um homem, apenas diriam que foi esperta e seria celebrada. Sei que muitos caras de Wall Street já fizeram coisas piores e não passaram um dia na cadeia. Não estou dando desculpas, só chamando atenção para isso.

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Os ideais individualistas de riqueza, status e likes do tal “sonho americano” do século XXI não deixam de ser, na opinião da atriz Laverne Cox, as motivações de Anna, a verdadeira. Laverne é uma das integrantes do elenco da minissérie e faz o papel da personal trainer Kacy Duke, que deu aulas para Britney Spears, Lenny Kravitz e Madonna e, como meia Manhattan, foi enganada por anos.

—Anna tenta alcançar o sonho americano por todos os meios necessários e não é diferente de muitas pessoas que nasceram aqui ou vêm para cá e se envolvem em atividades questionáveis ou até ilegais — diz Laverne também por chamada de vídeo. — Alguns, como ela, vão para a cadeia. Outros se tornam presidente dos Estados Unidos.

Apesar de a falsária não ter contribuído diretamente com a série (Shonda diz nunca ter conversado pessoalmente com ela por não querer se “envolver emocionalmente, nem estar na vida dela”), a russa assinou um acordo de centenas de milhares de dólares com a Netflix, ainda na época do julgamento. Rachel Williams, a autora do livro que sai agora no Brasil, critica esse tipo de negociação.

— Qual o efeito na audiência se glamourizamos esse comportamento? Ela conseguiu um acordo que financiou a defesa criminal, uma plataforma que repaginou a imagem dela. E sobrou dinheiro, mesmo após a restituição das vítimas. Então, acabou sendo um bom negócio. Esse entretenimento vale a pena? — diz Rachel, que vendeu os direitos do livro para um estúdio concorrente, mas os obteve de volta. — Entretenimento é ótimo, mas temos que estar atentos ao poder das histórias.