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'Segunda chamada': professores contam quais situações iguais às da série viveram na vida real

Série da Globo faz sucesso na sala de aula ao retratar ensino para adultos com realismo
Professores da Fundação Roberto Marinho analisam a série Segunda Chamada, da Globo, e contam experiências reais vividas em sala de aula Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo
Professores da Fundação Roberto Marinho analisam a série Segunda Chamada, da Globo, e contam experiências reais vividas em sala de aula Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo

RIO - Ao retratar a rotina de uma escola pública localizada em meio a uma comunidade na cidade de São Paulo, a série “Segunda chamada’’ logo causou identificação em grande parcela do público que conhece ou vive essa realidade de perto. Na história, os alunos enfrentam os mais diversos dilemas, acarretados por suas duras condições de vida, que não permitiram que eles frequentassem o colégio quando estavam em idade escolar. As tramas repercutiram em salas de aula reais, e quatro professores dedicados à Educação de Jovens e Adultos (EJA) em áreas consideradas de risco no Rio contam como os estudantes se viram na TV, além de compartilharem situações abordadas na ficção que já aconteceram enquanto estão trabalhando. Aline Araújo, que dá aulas na Vila dos Pinheiros, na Maré; Cristina Tepedino, que atua no Tabajaras e no Santa Marta; João Raphael, que leciona no entorno do Rio Comprido; e Vitor Félix, que ensina na Nova Holanda, são todos profissionais da Fundação Roberto Marinho , que tem núcleos educacionais gratuitos espalhados por toda a cidade. Eles comprovam como a educação é a arma mais eficiente para provocar mudanças efetivas de vida.

Cristina Tepedino, 39 anos, formada em História pela PUC

A professora Cristina Tepedino Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo
A professora Cristina Tepedino Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo

Série versus sala de aula real: “Eu soube da série pelos alunos, que disseram: ‘É a gente na história’. Uma situação muito comum é ver maridos e filhos acharem que a escola não serve para nada quando suas mulheres ou mães vão estudar. Tive uma aluna de 60 anos, dona de um restaurante, que precisava da ajuda do filho no trabalho para conseguir frequentar as aulas. Mas ele não contribuía. O sobrinho, motoboy, a acompanhou só pra auxiliar, mas acabou virando um dos melhores alunos, orador da turma. Ela desistiu’’.

Pior momento em sala de aula: “Houve uma briga com agressão física. Dois alunos trocaram socos, tive que agir. Só um deles continuou estudando’’.

Melhor momento em sala de aula: “Conseguir despertar neles o desejo de aprender mais. Em dois anos (na Fundação Roberto Marinho, esse é o tempo que os profissionais convivem com uma mesma turma), vemos que a pessoa não é boa em tudo, mas enxergamos que ela é boa em alguma coisa’’.

Aline Araújo, 33 anos, formada em Letras pela Uerj

A professora Aline Araújo Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo
A professora Aline Araújo Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo

Série versus sala de aula real: “Na história da TV, a escola se chama Carolina Maria de Jesus, autora do livro ‘Quarto de despejo’. Nós já tínhamos feito um trabalho sobre essa obra em sala, e uma aluna, ao ver a série, falou para o marido, com orgulho: ‘Eu sei quem é essa escritora’. A diferença do perfil dos estudantes mostrada também é muito clara. Temos que ser afetuosos e ter empatia. Eles estão muito acostumados com o ‘não’. Os outros não acreditam muito neles, e eu já ouvi ‘Obrigada por não desistir da gente’’’.

Pior momento em sala de aula: “Infelizmente, tive um aluno que foi preso por roubo na Avenida Brasil. Ele era superinteressado, um dos que mais faziam perguntas na sala. Levou um tiro na perna e está no presídio de Bangu. Aconteceu um dia antes do meu aniversário’’.

Melhor momento em sala de aula: “Fizemos a divulgação de um curso profissionalizante, e os alunos se inscreveram na prova para estudar no Colégio Santo Inácio. Outros também foram fazer o Enem. Antes, eles não sabiam nem o que era necessário para se inscrever porque não acreditavam neles. Hoje, acreditam’’.

Vitor Félix, 24 anos, formado em Letras pela Uerj

O professor Vitor Félix Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo
O professor Vitor Félix Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo

Série versus sala de aula real: “A questão do respeito ao professor mostrada em ‘Segunda chamada’ é um diferencial que vivemos ao trabalhar com a Educação de Jovens e Adultos. Somos muitos próximos dos alunos porque eles já abandonaram ou foram abandonados pelo sistema tradicional de educação. Vários dizem que os relatos reais ao fim dos episódios chamam atenção. Em um depoimento, uma senhora contou que escreveu professor com ‘p’ maiúsculo em sua primeira redação e foi questionada na hora da correção. Ela argumentou que fez assim, da mesma forma que escrevia mãe com ‘m’ maiúsculo. Ouvi que também sou um professor com ‘p’ maiúsculo.

Pior momento em sala de aula: “Nunca vivi uma situação em que houvesse risco, mas conheço um professor de Biologia que precisou se afastar para fazer tratamento. Isso é uma realidade’’.

Melhor momento em sala de aula: ‘‘Dei aula para um aluno que morava na zona rural e só tinha luz elétrica em casa durante 12 horas por dia. Dedicado, ele passou em Engenharia na Universidade Federal Fluminense (UFF)’’.

João Raphael Ramos, 29 anos, formado em Ciências Sociais pela UFRJ

O professor João Raphael Ramos Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo
O professor João Raphael Ramos Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo

Série versus sala de aula real: “Na ficção, uma das alunas levou a filha bebê para a sala de aula. Eu recebo muitas crianças na escola. Faço questão de dizer que podem trazer porque esse é um dos motivos que geram mais evasão. Tem conflito, mas também tem acolhimento. Pego no colo, brinco, e isso aumenta nossa responsabilidade dentro da classe. As discordâncias religiosas mostradas na TV também são comuns. Assim como na história, falei de sincretismo religioso para os alunos”.

Pior momento em sala de aula: “Houve uma discussão que quase acabou em agressão física. Adverti os envolvidos e precisei suspender um aluno. Mesmo assim, todos os dias ele ia pra escola e ficava do lado de fora, o que mostra a importância daquele espaço pra ele, que veio conversar, pediu desculpa e disse que pensou no que tinha feito’’.

Melhor momento em sala de aula: “No primeiro dia de aula, peço para que os alunos escrevam uma carta para si mesmos, que eu chamo de cápsula do tempo. Ao fim de dois anos, eles leem. Uma aluna começou a ler a sua e ficou estática. Disse: ‘Olha como eu escrevia, pontuava, acentuava...’. Foi legal ver que ela percebeu sua própria evolução, tudo o que tinha conquistado. E isso aconteceu com uma aluna de 67 anos’’.