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Cultura TV

'Segunda chamada': transfobia e intolerância religiosa são temas de nova série da Globo sobre educação

Na linha de 'Sob pressão', série aborda com realismo ensino de adultos, tema ignorado na vida real e na ficção
Marco André (Silvio Guindane), professor de Artes; Sônia (Hermila Guedes), professora de História e Geografia; Lúcia (Débora Bloch), professora de Língua Portuguesa; o diretor Jaci (Paulo Gorgulho); e Eliete (Thalita Carauta), professora de Matemática. Parte do elenco de "Segunda chamada", série da TV Globo Foto: Mauricio Fidalgo / TV Globo
Marco André (Silvio Guindane), professor de Artes; Sônia (Hermila Guedes), professora de História e Geografia; Lúcia (Débora Bloch), professora de Língua Portuguesa; o diretor Jaci (Paulo Gorgulho); e Eliete (Thalita Carauta), professora de Matemática. Parte do elenco de "Segunda chamada", série da TV Globo Foto: Mauricio Fidalgo / TV Globo

RIO - No primeiro episódio de “Segunda chamada” , que vai ao ar hoje na TV Globo, após “Filhos da pátria”, muita coisa acontece. Enquanto a transexual Natasha (Linn da Quebrada) tenta vencer o preconceito de outros alunos, como Dona Jurema (Teca Pereira) , para poder entrar no banheiro feminino, a jovem Solange (Carol Duarte) parece cada vez mais aflita ao acompanhar a aula com seu bebê nas mãos. Ao mesmo tempo, vemos um pai de família ironicamente chamado de Maicon Douglas (Felipe Simas) recorrer às drogas para poder dar conta de trabalhar enquanto estuda.

Embora dramatizadas, todas são histórias que poderiam acontecer em uma noite numa escola pública de verdade, garantem as autoras da trama, Carla Faour e Julia Spadaccini . Para criar a série, a dupla visitou colégios no Rio e em São Paulo que oferecem aulas de educação para jovens e adultos (EJA), e conversou com alunos e professores.

— Cada personagem que a gente ficcionalizou, vimos que se repetia em todas as classes. A gente tinha felicidade em conversar com o professor e ver que já tínhamos o material do que realmente acontecia com eles — conta Spadaccini, ao citar como exemplo o caso da personagem de Teca Pereira, uma senhora que é proibida de estudar pelo marido. Para poder ir às aulas, ela diz que está na igreja.

A diretora artística de ‘Segunda Chamada’, Joana Jabace, entre as autoras Julia Spadaccini e Carla Faour Foto: Mauricio Fidalgo / TV Globo
A diretora artística de ‘Segunda Chamada’, Joana Jabace, entre as autoras Julia Spadaccini e Carla Faour Foto: Mauricio Fidalgo / TV Globo

Segundo Faour, um tema recorrente encontrado na pesquisa foi a intolerância, seja racial, religiosa, de gênero.

—As escolas de ensino noturno são como um microcosmo das camadas mais vulneráveis da sociedade. Você tem pessoas de vários credos religiosos, de faixas etárias muito diferente, dos 17 aos 80 anos. Tudo que está na pauta de discussão comportamental a gente encontra lá — defende.

Ela lembra que o EJA costuma ser visto como o “patinho feio” da educação. Tanto que, quando a pesquisa da Globo procurou alguma série dramática sobre o assunto ao redor do mundo, não encontrou nenhuma.

— O ensino para adultos está sempre na corda bamba, sempre na iminência de acabar. É como se aquelas pessoas não valessem a pena o investimento. Se tiver corte, é onde (as autoridades) acham que podem cortar.

Contra a corrente, as autoras encontraram mestres empenhados em fazer com que os alunos não desistam de si, apesar da precariedade. Foi assim que criaram a protagonista Lúcia (Debora Bloch). Professora de Língua Portuguesa, ela retorna à fictícia Escola Estadual Carolina Maria de Jesus após a traumática morte de um aluno. Ela e o restante do corpo docente são o fio condutor da trama, que conta ainda com o pragmático diretor Jaci (Paulo Gorgulho); o idealista professor de Artes Marco André (Silvio Guindane), um recém-chegado ao ensino público; a desmotivada Sônia (Hermila Guedes), de História e Geografia e Eliete (Thalita Carauta), de Matemática, uma ex-aluna do colégio que conhece bem a realidade dos alunos.

Escola de verdade

Seguindo um filão já explorado pela Globo em “Carcereiros”, que aborda o sistema penal, e “Sob pressão”, que narra as batalhas dos profissionais que atuam no SUS, “Segunda chamada” aposta no realismo para tratar de um grande tema. A busca pela fidelidade pautou a diretora artística Joana Jabace , em seu primeiro trabalho na Globo na função.

— Desde a primeira vez que li o texto, entendi que a melhor maneira de contar essa história era da maneira mais naturalista possível, se aproximando de um documentário em pontos como a interpretação dos atores — conta Joana, que com documentaristas como Eduardo Coutinho e Eduardo Escorel.

Uma decisão fundamental, conta a diretora, foi ocupar a antiga Escola do Jockey Club de São Paulo. Construída nos anos 1950, a locação já abrigou colégios particulares e passou a última década desocupada.

— Como é uma escola de verdade, ela permite fazer a a cena da forma como ela realmente é. Assim, a cena começa em sala de aula, segue para o corredor e termina no patio. Se estivéssemos numa cidade cenográfica, dias depois eu gravaria a sequência, em algum outro lugar — explica.

Mas o grande desafio ficou por conta da iluminação: Jabace conta que 90% das cenas são noturnas, mas ela queria fugir de um aspecto soturno, que pudesse afastar o público.

— Estamos falando de TV aberta. Tem gente que vê do carro ou em TV de 12 polegadas. Se ficasse muito escuro, não chegaríamos no telespectador. E era importante que tivéssemos uma temperatura vibrante.

A luz que Jabace tanto procurou também tem a ver com a esperança encontrada pelas autoras no diálogo com professores.

—Com todas as dificuldades, a escola é um lugar de afeto, de acolhimento. É um lugar social. As pessoas não vão só para estudar, vão para ter um resgate de si, da autoestima. A gente sai transformada dessa série. A educação de fato faz a diferença, e isso não é utopia nem romantismo — encerra Faour.