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Cultura TV

Séries documentais superam rótulo de 'chatas' investigando crimes reais

Gênero vive uma era de ouro graças a streaming e movimento #MeToo
Séries criminais como "Lorena" e "Deixando Neverland" vêm ganhando cada vez mais espectadores Foto: Reprodução
Séries criminais como "Lorena" e "Deixando Neverland" vêm ganhando cada vez mais espectadores Foto: Reprodução

RIO — Um homem que entra num banco com uma bomba no pescoço e explode em seguida. Uma mulher que morre misteriosamente na escadaria da própria casa. Uma esposa que, uma noite, resolve cortar com uma faca o pênis do próprio marido . Esses são apenas os começos de algumas das histórias recentes que prenderam telespectadores na frente das telas por horas a fio. Em comum, o fato de todas serem crimes reais transformados em séries documentais na televisão.

Antes acusado de chato, o gênero dos documentários vive sua melhor fase na televisão. Com telespectadores já acostumados a “maratonar” séries de ficção, surgem produções que apostam em depoimentos detalhados e imagens de arquivo para contar histórias que se desenrolam aos poucos, em vários episódios. Nessa seara, os crimes costumam ser o objeto preferido, como nos exemplos de  “The staircase” e “Lorena”.

Embora ainda sejam poucas no Brasil, começam a surgir iniciativas dentro do gênero — a atriz Bárbara Paz, por exemplo, trabalha num projeto a partir de depoimentos de vítimas do médico Roger Abdelmassih . Ainda sem data, o projeto irá ao ar no Gshow ou no Globoplay.

— Antes não havia tanta janela para obras documentais. Com o streaming, as pessoas estão entendendo a importância do real. Espero que este seja um caminho sem volta — comemora a atriz.

Gênios diabólicos

Idealizador e narrador da docussérie “Gênio diabólico”, Trey Borzillieri conta que as mudanças no mercado permitiram que o gênero florescesse nos últimos anos. O sucesso de pioneiros como “ The jinx ” e “ Making a murderer ” (ambos de 2015), ele diz, provou aos executivos que havia espaço para séries documentais.

— A nossa história implorava para ser contada cronologicamente, com todas as reviravoltas naturais e personagens que apareciam no caminho. Depois do sucesso dessas séries, nós não parecíamos mais loucos apresentando uma história tão longa — diz ele, que cita o “tempo” como o grande diferencial dessa nova leva de produções, ao contrário de programas sobre crime mais tradicionais.

— Todas as docusséries de true crime bem-sucedidas foram documentadas por seus criadores por um longo período de tempo. Produções de TV convencionais são feitas com prazos apertados, e isso torna mais difícil se aprofundar no caso e construir relacionamentos com aqueles que estavam mais próximos da história — observa Borzillieri, que se comunicou por uma década com Marjorie Diehl-Armstrong, a grande conspiradora por trás do crime de “Gênio diabólico”.

Além de beber na fonte do jornalismo literário, no espírito de “A sangue frio”, de Truman Capote (que Borzillieri assume ser uma influências), a estrutura narrativa de muitas dessas produções se aproxima da que é utilizada em podcasts como “Serial”, que fez furor em 2014 ao explorar o assassinato de Hae Min Lee, jovem morta em 1999 em Baltimore. O mesmo caso também é alvo de uma docussérie recém-lançada da HBO, “O caso contra Adnan Syed”.

Em produção desde 2015, a obra de Amy Berg volta a questionar a condenação à prisão perpétua do jovem de origem paquistanesa Adnan Syed, ex-namorado da vítima. Desde que “Serial” foi ao ar, o caso ganhou imensa repercussão nos Estados Unidos, com pressão de fãs para que Syed passasse por um novo julgamento. Este mês, dois dias antes da estreia da docussérie por lá, o pedido de retomada na Justiça foi negado pela mais alta corte do estado de Maryland.

Não é incomum que produções do tipo gerem interferências nos casos. Em “The jinx”, série da HBO que investigava as acusações de assassinato contra Robert Durst, o acusado acabou sendo pego confessando o crime em voz alta, sem saber que estava sendo gravado. Já a repercussão de “Making a murderer” gerou um abaixo-assinado à Casa Branca pedindo que Steven Avery e Brendan Dassey fossem perdoados e, até hoje, continua a pressão para que o caso seja reaberto. Este ano, a série ganhou uma segunda parte com novas informações sobre o caso, da mesma forma que a pioneira “The staircase”, lançada originalmente na TV francesa em 2004.

Professor de direito penal da Uerj, o procurador da república no Rio de Janeiro Artur Gueiros diz não temer que produções do tipo possam abalar a crença da população no sistema judicial, por mais que muitas delas se destinem a retratar casos mal resolvidos.

— Esses erros pontuais não tiram a credibilidade, ao contrário, demonstram que o sistema sabe reconhecer que houve um erro e sabe corrigi-lo — afirma o especialista, que diz não existir uma relação de “causa e efeito” entre a repercussão de um caso e a decisão final:

— O que tem que ficar claro é que uma obra artística pode enfatizar uma versão que não exatamente é a mesma daquilo que foi discutido no caso concreto.

Celebridades na mira

A repercussão do movimento #MeToo também tem incentivado os canais a retornar a denúncias já conhecidas, mas com depoimentos aprofundados de vítimas. É o caso de “Sobreviver a R. Kelly”, do Lifetime, e “Deixando Neverland”, da HBO. Ambas lançadas este mês, as séries trazem novos relatos das acusações de abuso sexual que há anos pairam sobre os dois cantores americanos. .

Imagens do documentário "Deixando Neverland", de Dan Reed, em cartaz na HBO Foto: Divulgação
Imagens do documentário "Deixando Neverland", de Dan Reed, em cartaz na HBO Foto: Divulgação

— É tudo sobre o timing, e este é um tempo em que as pessoas estão em busca da verdade. Encontrar a verdade em histórias factuais é algo que é atraente ao público agora — defende Brie Miranda Bryant, vice-presidente do Lifetime.

Dar voz a vítimas de violência sexual também foi a motivação para Bárbara Paz gravar depoimentos de vítimas de Roger Abdelmassih. A ideia veio após a atriz participar da minissérie do Globoplay “Assédio”, que dramatiza as histórias.

— Estamos fazendo o caminho inverso. Quando você assiste a uma série de ficção, fica com vontade de ver quem são essas pessoas. Como essas mulheres ficaram muito tempo caladas, percebi que precisavam ter voz — afirma.

Crimes nacionais

Enquanto nos Estados Unidos o gênero true crime já é estabelecido na TV e apenas se sofistica, no Brasil ainda há vasto espaço para produções do tipo. Na lembrança do público, o maior sucesso continua a ser o “Linha direta”. Transmitido entre 1999 e 2007 pela Globo, após uma primeira versão em 1990, o programa apresentava reconstituições de crimes reais cujos autores ainda estavam foragidos.

Voltado para o nicho, o canal da TV a cabo Investigação Discovery está finalizando o docudrama nacional “Crimes.com”, sobre crimes brasileiros cometidos na internet. Lançado em 2012, o canal afirma que 70% de seu público é feminino.

— Elas se sentem mais vulneráveis, e assistir a séries de crimes reais se torna um alerta. Você vai aprendendo sobre como eles acontecem e sobre como não se tornar uma possível próxima vítima — avalia Monica Pimentel, vice-presidente de Conteúdo da Discovery no Brasil.

Outro case de sucesso nacional é a série “Investigação criminal”, da produtora Medialand. Com nove temporadas já produzidas, a série se debruça a cada episódio a um crime de grande repercussão nacional, como o da família Nardoni ou o de Suzane von Richthofen. As quatro primeiras temporadas estão disponíveis na Netflix e a primeira temporada vem sendo exibida pelo SBT na faixa “O crime não compensa”. Ao contrário das séries americanas, o “Investigação criminal” prefere casos que já foram completamente elucidados pela polícia e apresenta relatos de investigadores, que contam como descobriram os autores de cada crime.

— O brasileiro está farto das coisas que dão errado. Quer saber quem são esses bons exemplos para respeitar e admirar — defende Carla Albuquerque, que dirige a série ao lado do sócio, Beto Ribeiro.