Ruth de Aquino
PUBLICIDADE
Ruth de Aquino

Tudo sobre a política de nossa vida e não de Brasília

Informações da coluna

Ruth de Aquino

Tudo sobre a política de nossa vida e não de Brasília. Cidadania, família, educação, amor, sexo, drogas, religião, envelhecimento, saúde, arte e viagens.

Por Ruth de Aquino

“Meu nome é Terezinha Maria de Jesus, tenho 48 anos, sou do Piauí, cheguei no Rio no ano de 1998 em busca de emprego e vida melhor. Sou mãe de cinco filhos. Leonardo, Patrícia, Daniel, Ana Flávia. Eduardo, o caçula, tinha 10 anos. No dia 2 de abril de 2015, perdi meu filho, sentado na escada de fora de casa, no Complexo do Alemão. Um tiro de fuzil disparado por policiais jogou um pedaço do crânio dele na sala. A grade da janela ficou suja de massa encefálica do meu guri.

Eu era diarista. Não tive muito estudo. Vim de família pobre, minha mãe criou sozinha sete filhos, meu pai me abandonou quando eu tinha três anos. Passei muita agonia com o pai dos meus filhos. Educação era na base da chibatada. Ele bebia muito. Chegava em casa e começava a espancar as crianças dormindo, eu entrava no meio, sou mãe leoa, apanhava junto. Ia para a casa das patroas toda cheia de manchas.

Um dia, veio com faca pra cima de mim no sofá. Mãe, levanta que o pai vai te matar. Meu filho Daniel estava com 15 anos, deu um empurrão nele, ele caiu, bêbado, chutou minha perna. Falei, hoje vou te denunciar. Desci com as filhas para a parte baixa do Complexo do Alemão, lá tinha policiais do 16º Batalhão. Desmaiei e só acordei no hospital, com os filhos chorando. Fizemos o boletim de ocorrência. Ele foi processado na Lei Maria da Penha, mas não foi condenado a nada, nem afastamento. A lei pra mim não serviu.

No dia 10 de fevereiro de 2010, meu barraco que comprei com muito suor foi demolido pela prefeitura do Rio porque ia passar o teleférico. O prefeito era Eduardo Paes. O teleférico, além de não estar funcionando, passou longe da minha casa. Há 13 anos estou na luta para receber um apartamento, só vem o aluguel social de R$ 400. Minha vizinha recebeu. A gente teve que sair às pressas. Quando veio a ordem, o trator veio junto, quase não deu tempo de tirar as coisas.

No dia primeiro de abril de 2015, deixei o Eduardo na escola e fui trabalhar. Não fica correndo na rua porque a favela não tá muito boa pra ficar pra cima e pra baixo. Na quinta era feriado. Arrumei a casa, fiz comida. Eu estava num cansaço nesse dia, deitei na cama dele. Quando chegar a hora da novela da tarde, você me chama, Eduardo. Dormi com massagem dele nas minhas pernas, nos meus pés. Às cinco e vinte da tarde, ele me chamou, já começou o Rei do Gado. Liguei a TV da sala. Eduardo foi para a escada, do lado de fora. Não vimos que havia policiais. Na varanda tinha um pedreiro.

Ouvi então uma explosão. Pensei que fosse uma bomba. Levantei do sofá mas a varanda estava tomada de fumaça. Não via mais o pedreiro, nem o Eduardo. Aí vi o Eduardo caído. Entrei em desespero. Não sei se eu desci a escada ou pulei. Gritava levanta meu filho, acorda meu filho, não vai embora. Pedi ao pedreiro. Me ajuda a levar meu filho para o hospital. Ele respondeu: seu filho já está morto. Ainda abaixada, eu vi a fileira dos dez policiais. Parti pra cima.

O primeiro era da tropa de choque. Cheguei perto, segurei no colete dele. Você matou meu filho. Assim como matei seu filho, eu posso muito bem te matar. Ele colocou fuzil na minha cabeça. Solta o colete do policial que ele vai te matar. Solta, solta. E eu não soltava. Aí um policials disse. Vamos botar um kit de drogas e uma arma na mão dele. Na delegacia, disseram que confundiram o celular do Eduardo com uma pistola. Queriam incriminar o corpo do meu filho.

Foi chegando muita gente. Minha roupa estava salpicada de sangue e eu não vi. Só quando a perícia chegou, às 10 da noite, eu vi o pedaço de crânio que entrou pela porta com a violência do tiro. Varamos a madrugada na delegacia para fazer a denúncia. Tive que sair de casa porque fui ameaçada pelos policiais. Na mesma madrugada a porta da casa de minha filha Patrícia foi alvejada com tiros de fuzil. Aí minha luta por justiça começou.

Meu filho foi enterrado na minha cidade, Corrente, a 900 km de Teresina. Eu me mudei pra lá. O Estado do Rio me deu R$ 199 mil de indenização. E o mesmo valor para o pai, que se mandou. O governador, Pezão, quis fazer logo esse acordo. Essa indenização foi uma tentativa de cala-boca. Acharam que iam me silenciar. Foi o Estado que tirou Eduardo dos meus braços. Dinheiro nenhum traz meu filho de volta. Ninguém foi condenado.

Quando encerrou o caso, depois de sete meses de investigação, o delegado, Rivaldo Barbosa, disse que foi legítima defesa. Mentiroso e covarde. A convite da Anistia Internacional, fui denunciar na Holanda, Inglaterra, Suíça e Espanha. Houve pressão internacional. Mas o Brasil é um país sem justiça. São várias mães que gritam e nada acontece. Principalmente as negras, pobres e faveladas”.

Terezinha ainda diz ter cinco filhos. Como se Eduardo, morto por policiais, estivesse vivo. É nele que vai pensar neste domingo, quando almoçar com os outros. Como Fatinha, da Rocinha, que perdeu Hugo Leonardo. Bruna, mãe do Marcos Vinicius, na Maré. Vanessa, mãe de Ágatha Félix, no Alemão. Rafaela, mãe de João Pedro, de São Gonçalo. Milhares. Elas criaram movimentos e redes de apoio. Para lutar e se consolar umas às outras. São quase dez mil investigações sobre mortes violentas de crianças e adolescentes em duas décadas. Sem conclusão nenhuma. Somente no Estado do Rio. Os dados são da Defensoria Pública do Estado.

Neste domingo, além de almoçar com meus filhos, pensarei em vocês, mães-coragem. Terezinha de Jesus, eu também peço justiça.

Mais recente Próxima 'Macacos', um imperdível retrato de nós