Ruth de Aquino
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Ruth de Aquino

Tudo sobre a política de nossa vida e não de Brasília

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Ruth de Aquino

Tudo sobre a política de nossa vida e não de Brasília. Cidadania, família, educação, amor, sexo, drogas, religião, envelhecimento, saúde, arte e viagens.

Por Ruth de Aquino

Ma-ca-cos. Ma-ca-cos. Ma-ca-cos. A cena inicial do monólogo de duas horas é um jovem negro, de costas, short de moleque, descalço, gesticulando os braços como um torcedor branco de estádio xingando atletas pretos, na arquibancada. Ou como um ser enfurecido. “O macaco chegou”, diz ele. A voz é potente. A voz é muito potente. Desse minuto em diante, o ator, autor, diretor Clayton Nascimento hipnotiza, domina a plateia do lotado Teatro Ipanema. É sua primeira temporada no Rio de Janeiro.

A interpretação de Clayton, suando, cuspindo, esbravejando, se contorcendo, rindo, nos provoca, aturde, diverte. E nos envergonha. Seu acessório é um batom vermelho que ele transforma em giz na lousa escura do corpo. É uma peça visceral. Uma porrada. Se você é brasileiro, precisa assistir. É a História contada de maneira irresistível, lúdica, em episódios. Ali estão as causas do racismo entranhado na alma em um quebra-cabeças. A mancha no caráter nacional. Também está na peça a história do ator, mais emocionante que qualquer TED talk sobre nunca desistir de seus sonhos.

Quem é Clayton Nascimento? Nome improvável de artista, ele se recusou a mudar. Trocou a conveniência sonora pelo respeito a sua identidade. Se o talento precisava de um “carimbo”, não mais. Ele é agora o quarto ator negro – e o mais jovem, aos 34 anos – a ganhar o prestigiado Prêmio Shell de Teatro, criado em 1988, ano em que Clayton nasceu. Milton Gonçalves em 2001, Luís Miranda em 2020 e, agora, em 2023, Cridemar Aquino ... e Clayton. Virão muitos outros prêmios, porque ele é gigante pela própria natureza. Não é só “um símbolo da diversidade”.

Clayton se diz “piauilistano”. Nasceu na periferia de São Paulo, Jabaquara, de pais de Queimada Nova, no Piauí. A mãe, manicure, e o pai, da construção e do comércio. Viu amigos de infância presos, assassinados, drogados. Mas sua infância foi linda, de subir em árvore, brincar na rua, com patins compartilhados. Seus pais o criaram numa bolha de amor. Foi levado pela mãe, Maria do Carmo, aos 8 anos, para estudar teatro. A família queria proteger o menino, negro e gay, dos perigos e da violência. Como proteger? Pela educação e pela Arte.

Clayton ganhou 15 anos de bolsa. Início de uma paixão mas também de provações. Tentou cinco vezes o vestibular da USP, conseguiu enfim entrar numa turma branca, um ano antes da lei de cotas. Trabalhava como caixa de balada e de mercado. Tentou oito vezes o concurso para a EAD (Escola de Artes Dramáticas). Conseguiu. Tentou o mestrado na USP. Passou na primeira vez. Defende tese neste ano.

Essa peça começou a ser escrita há sete anos. Era um esquete de 15 minutos, sobre divas negras como Bessie Smith e Elza Soares, aplaudidas à noite e hostilizadas de dia. Já se chamava “Macacos”. O nome foi inspirado pelo ataque da torcida do Grêmio ao goleiro Aranha, do Santos, em 2014. “Lembro que as câmeras davam close numa gremista loura, gritando MA-CA-CO com raiva. Fiquei impressionado. Ela estava empoderada por aquele xingamento”. Ela confiava na impunidade. Era um crime de racismo.

Era um xingamento com muito orgulho, lembra Clayton, um orgulho validado por nossas condições sociais e educacionais, pela estrutura de poder, pela desigualdade que trata o negro como inferior. Que o condena. Como escravizado. Como serviçal. Como bandido. Brancos não disfarçam o espanto diante dos raros pretos que hoje são advogados, procuradores, médicos, ministros, economistas. Clayton mergulhou nas bibliotecas da USP, estudou educação pública, segurança pública, saúde pública. E retrocedeu até a “descoberta” do Brasil pelos portugueses, a chegada da corte, as falácias transmitidas nas escolas. As mesmas escolas que, hoje, querem incluir 'Macacos' como livro didático no currículo de História.

Foram muitos editais tentados. Recusados. Monólogo negro? Teatro-denúncia? Não funciona, Clayton! Foram muitas viagens sem cachê. Vaquinha online. Subemprego noturno. No ano passado, conseguiu enfim em São Paulo uma temporada de 20 apresentações após ganhar um edital em último lugar. Sete mil pessoas o viram. E agora está no Rio, nesse teatro mítico. Ator, autor, diretor. Protagonista de nossa história. Quem é Clayton Nascimento? Corra para descobrir. Quem sabe você descobre ali um retrato imperfeito de si mesmo?

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