Ruth de Aquino
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Ruth de Aquino

Tudo sobre a política de nossa vida e não de Brasília

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Ruth de Aquino

Tudo sobre a política de nossa vida e não de Brasília. Cidadania, família, educação, amor, sexo, drogas, religião, envelhecimento, saúde, arte e viagens.

Por Ruth de Aquino

Passei uma semana numa ilha. O quintal da casa era o mar. Como se eu estivesse num barco ancorado. Mas não era um barco, não balançava. A vista do outro lado das águas era a Mata Atlântica. Os visitantes eram pássaros e peixes de muitas cores. Surgiu uma arara. O sinal de internet era instável. Faltou luz quando choveu.

Perdi a noção de quantos mergulhos eu dei de dia e de noite. Às vezes, é preciso perder a noção. E abstrair o quanto do Brasil vive longe do que chamamos de noção.

Poderia, se quisesse, ter ligado a TV. Para ver séries. Poderia ter lido as edições digitais dos jornais. Soube, por alto, do Equador e das inundações no Rio e São Paulo. Nem me atrevi a me informar nas redes. Nada disso foi planejado. A viagem não era um detox de meditação. Simplesmente, a Natureza me subjugou. Fui lançada a um estado de contemplação e prazer. Sequer terminei o livro “O perigo de estar lúcida”, de Rosa Montero.

Isso aconteceu raras vezes comigo. Felizmente, por ganhar a vida como jornalista. Viciei-me em estar ligada 24 horas em tudo. Talvez por isso se torne tão importante perder por alguns dias a noção das horas e dos fatos, desligar da tecnologia, cuidar apenas da comida e da bebida, da limpeza, do exercício, do corpo e do sono, diante de uma paisagem que muda e seduz com a luz. Escutando as aves e as ondas nas pedras. E jazz.

“Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todos são parte do continente, parte de um todo (...). A morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não pergunte por quem os sinos sobram; eles dobram por ti”. Quem escreveu foi o poeta inglês John Donne, no ano de 1623. Morei anos em Londres escutando de ingleses: “Vou à Europa. Passarei as férias no continente”. O Brexit oficializou o sentimento de ilha.

Outro pensador, o americano Henry David Thoreau (1817 – 1862), formou-se em Harvard, mas experimentou viver na floresta por dois anos, em busca da simplicidade e da essência. Escreveu “Walden”, que encarava como uma viagem de descoberta espiritual. E uma manifestação contra o desperdício da sociedade de consumo.

Não é novidade que muitos de nós não suportem viver na poluição e em estado permanente de indignação contra injustiças e barbáries. O terror, as guerras, os crimes, o ódio, as covardias, os golpes emocionais e financeiros, tudo nos joga numa espiral que pode nos desumanizar. As saídas para não pirar dependem de cada um. Há quem faça retiros de silêncio ou corra todos os dias.

Fiz uma vez um retiro na França, para escrever uma reportagem. Fiquei em Plum Village (Vila das Ameixas), do mestre vietnamita Thich Nhat Hanh. Era um pacifista, exilado na França, impedido de voltar ao Vietnã. Desacelerei à força, mas de bom grado. Com meditações em jejum, outras a pé até o lago de lótus, comida vegetariana e períodos de silêncio absoluto.

Saí modificada. “A prática de parar e se acalmar contém em si a prática do discernimento”, dizia o Thich. E é verdade. “Existe uma montanha dentro de você. Você é mais sólido e alegre do que pensa”.

Sei bem que, num Brasil com 9 milhões de pessoas vivendo em áreas de risco, ameaçadas por tempestades e desabamentos, passar uma semana numa ilha paradisíaca soa quase como um pecado. Não devemos ser ilhas permanentes, pois a vida é em conjunto. Mas a experiência de ser uma ilha temporária, passageira como uma nuvem, pode nos melhorar como pessoas. Dentro de nós há embarcações que só a nós pertencem.

Há um adjetivo adorável em francês: “déboussolé”. Sem bússola, perdido, desequilibrado. Para se achar, às vezes é preciso mesmo se perder. É preciso saber ser uma ilha para se tornar um arquipélago.

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