Ruth de Aquino
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Ruth de Aquino

Tudo sobre a política de nossa vida e não de Brasília

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Ruth de Aquino

Tudo sobre a política de nossa vida e não de Brasília. Cidadania, família, educação, amor, sexo, drogas, religião, envelhecimento, saúde, arte e viagens.

Por Ruth de Aquino

Quem era essa vereadora favelada, essa mãe bissexual, essa defensora de direitos humanos, essa preta que condenava grupos policiais de extermínio de jovens? Quem Marielle pensava que era?

Por mais combativo que fosse seu discurso, por mais cativante que fosse seu sorriso, por mais que tivesse a legitimidade de 46 mil votos, ela não poderia prever essa comoção nacional se fosse morta. Ela não suspeitava de nada, nem de uma emboscada nem da apropriação de seu nome como bandeira. No Rio, no Brasil, no mundo.

Por que sua morte prematura, aos 37 anos, em 2018, com tiros na noite à queima-roupa, disparados por covardes, encomendados por mais covardes ainda, faria chorar uma cidade já embrutecida pela violência que dizima mais de seis mil vidas por ano? Faz sentido? Esse choro todo por causa de Marielle, que nasceu na Maré.

Esse nó na garganta. Essa indignação toda. Os aplausos para um caixão de #MariellePresente. Esses punhos erguidos, de mais resistência que raiva.

Quem era mesmo essa Marielle? De repente, mártir? Por que a dor por sua perda é mais intolerável? Ah sim. Por ser um crime político. Não só. Uma juíza, Patricia Acioli, foi morta na porta de casa com 21 tiros, em Niterói, também alvo de uma emboscada, em 2011. Investigava milícias de São Gonçalo. Foi um crime político. Mas não levou multidões às ruas como a vereadora Marielle.

Ah sim, por ser negra e da favela. Não só. Quantas mulheres negras, mães, pobres, são assassinadas, por bandidos, por policiais, por balas perdidas, por maridos, amantes e ex, e são choradas apenas por parentes? Quantas policiais negras são assassinadas em confrontos e assaltos?

Quem Marielle pensava que era? Não pensava. Agia, tinha pressa, engravidou na adolescência, uma amiga morreu de bala perdida, ela conseguiu bolsa na PUC, fez Sociologia. Mestrado em Administração Pública, com dissertação sobre as UPPs. Quantos concluem mestrado no Brasil? Marielle estudou a si mesma e a sua realidade carente de tudo. Casou com uma mulher.

Com cabelo afro e a fala potente, Marielle reunia num só corpo e numa só cabeça todas as definições de minorias. Gênero, cor, orientação sexual e ideologia política. Era mais conhecida entre os militantes à esquerda da esquerda no Rio. Mas nem isso definiria Marielle. Suas fronteiras eram globais. Daria uma palestra em Harvard no dia 7 de abril de 2018, sobre renovação política.

Marielle não poderia imaginar que sua morte brutal polarizasse tanto as redes. Houve quem a acusasse de “defender bandidos, ter ligação com o Comando Vermelho e passar a mão na cabeça de vagabundos”.

Esse pessoal, que votou duas vezes em a-gente-sabe-quem para presidente, não entendeu o significado de se silenciar uma voz parlamentar com uma pistola. Poucos entenderam que não se tratava apenas de mais um episódio de feminicídio, homofobia, ou racismo. Tratava-se de nós. De cada um. De liberdade, igualdade e fraternidade.

Que a morte de Marielle seja um divisor de águas turvas e transparentes no combate às milícias. E na defesa da liberdade de expressão. Seis pessoas citadas pela Polícia Federal por envolvimento no assassinato foram executadas entre 2018 e 2023. Estamos a caminho de punir exemplarmente quem mandou matar a vereadora. Percebam que nem citei aqui os nomes dos assassinos e dos mandantes. Porque o texto é sobre ela.

Torço para que a verdade inteira venha à tona e que manobras parlamentares e jurídicas não maculem o desfecho desse crime frio e torpe. Que o Brasil faça jus a si mesmo.

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