Ruth de Aquino
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Ruth de Aquino

Tudo sobre a política de nossa vida e não de Brasília

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Ruth de Aquino

Tudo sobre a política de nossa vida e não de Brasília. Cidadania, família, educação, amor, sexo, drogas, religião, envelhecimento, saúde, arte e viagens.

Por Ruth de Aquino

“Zona de interesse” começa com uma tela escura. A escuridão apaga as letras, como fumaça. O som assustador de algo desconhecido invade o cinema. Em seguida, o alívio. O sol. Uma família brinca feliz no campo. Mergulha no rio. À noite, os pais contam histórias para os filhos antes de dormir. A casa dos Höss é impecavelmente limpa. Só lençóis brancos no varal. O jardim de lilases e dálias enfeita uma piscina central.

O filme do britânico Jonathan Glazer ganhou dois Oscars. Filme internacional e som. O único que chora e grita na casa é o bebê recém-nascido. E os vizinhos judeus, que moram e morrem do outro lado do muro. Ali, fica o campo de concentração de Auschwitz, onde mais de um milhão foram mortos. O patriarca da família, Rudolf, é o comandante do campo. Sem exibir nenhum cadáver, o filme deixa escapar, do cenário idílico, algumas marcas da máquina de genocídio nazista, orquestrada em silêncio.

As crianças brincam no beliche com dentes arrancados dos judeus. Hedwig, a mulher de Rudolf, distribui entre empregadas roupas confiscadas de judias. Ela posa em frente ao espelho com um casaco de pele, que manda lavar e consertar, e usa um batom vermelho encontrado no bolso. Sem pudor. O marido faz sexo no escritório com uma judia e lava minuciosamente seu órgão numa pia antes de voltar aos braços da esposa.

“Zona de interesse” é um filme desconfortável, pelo contraste e pelo oculto. Retrata uma família nazista como se fosse uma família normal. É a banalidade do mal de Hannah Arendt, filósofa judia de origem alemã. Hedwig, interpretada pela magistral Sandra Hüller (de “Anatomia de uma queda”), abusa moralmente de uma empregada judia, lembrando que a salvou de virar “cinzas”. À noite, ela pergunta ao marido quando vai levá-la a um spa na Itália e diz, com um riso coquete, que está usando perfume francês. De quem?

Ver a vida daquela família escorrer cotidianamente, convivendo com o som, abafado, de gritos e choros de seres humanos sendo executados, em meio a latidos de cachorros, é um soco na alma. No céu limpo, a fumaça enegrecida sai das chaminés dos fornos crematórios. Quando Rudolf assoa o nariz, sai fuligem.

A dona da casa se orgulha de ser conhecida como “a Rainha de Auschwitz”. Ela despreza “os judeus bolcheviques”. Não arreda o pé dali nem quando o marido é transferido temporariamente. Hedwig se orgulha de ter chegado aonde chegou. Esposa do comandante. “Estamos realizando nosso sonho desde os 17 anos, temos uma vida tranquila com os filhos, no campo, como o Führer sempre defendeu”.

“Zona de Interesse” se baseia no livro homônimo de Martin Amis. O casal do livro e do filme, Rudolf e Hedwig Höss, existiu na vida real. “Rudi” ficou conhecido por sistematizar e otimizar a matança. Ele optou pelo Zyklon B, gás letal feito a partir de um desinfetante de roupas. Sob seu comando, Auschwitz matava mais de 2 mil por hora. A “Operação Höss”, assim batizada em sua homenagem, matou 430 mil judeus húngaros em menos de dois meses.

É inevitável associar esse filme ao silêncio e à omissão do mundo diante de tanta injustiça e crueldade. Diárias. É inevitável sentir calafrios com o avanço da extrema-direita em todos os continentes. E com a linguagem bélica, ultranacionalista e ameaçadora. Trump, Netanyahu, Putín. Hungria, Itália, Portugal. Etcetera. É inevitável escrever uma coluna sombria logo depois de assistir a "Zona de interesse".

O muro que separa a casa dos Höss de Auschwitz é encoberto aos poucos pelas trepadeiras de Hedwig, a matriarca de modos bruscos e sem compaixão. “As flores vão esconder tudo”.

Quantos muros separam nossas vidas de outro mundo? São muros físicos e mentais. São grades. São vidros com insulfilm. São fronteiras com metralhadoras e arames farpados. O muro também está em nossa retina. Olhamos para outro lado. Tapamos os ouvidos. Evitamos os noticiários sobre o genocídio em Gaza, o afogamento de imigrantes, os massacres na África, os envenenamentos na Rússia, os bombardeios na Ucrânia. E os tiroteios, sequestros, assassinatos nas rodoviárias, nos trens, nos morros do lado de nossas casas. Ali, bem ali onde moram nossas empregadas e suas famílias.

É uma forma de sobreviver. A outra é lutar contra nossa indiferença.

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