Ruth de Aquino
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Ruth de Aquino

Tudo sobre a política de nossa vida e não de Brasília

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Ruth de Aquino

Tudo sobre a política de nossa vida e não de Brasília. Cidadania, família, educação, amor, sexo, drogas, religião, envelhecimento, saúde, arte e viagens.

Por Ruth de Aquino

Faz muito tempo que não chamo de acidente esse tipo de crime. Fernando Sastre de Andrade Filho, orgulho da mãe, tem 24 anos e dirigia um Porsche do pai, sem seguro, no valor de R$ 1,3 milhão. Bebeu num bar de pôquer, não respeitou os apelos da namorada para não conduzir, corria a 156km/h numa via com velocidade máxima de um terço disso. Matou um motorista de aplicativo que dirigia a 40km/h um Renault Sandero 2017 no valor de R$ 40 mil, Ornaldo da Silva Viana.

Essa história, de uma madrugada de domingo de Páscoa, é uma síntese da desigualdade, do desprezo pela vida humana e da violência impune. O trânsito no Brasil só mata menos do que na Índia e na China, cada um com mais de 1,4 bilhão de habitantes. Agora, temos reconstituição com scanner 3D e drone, laudos periciais. Depoimentos serão maquiados? Vimos o vídeo de um bólido arremessando o outro carro como se fosse um míssil. O Porsche atinge essa velocidade em sete segundos.

Nada vai acontecer com Fernando, o rapaz que evitou o bafômetro e fugiu sob as saias da mãe, com a desculpa de que ia a um hospital cuidar de ferimento na boca. Nada vai acontecer com Fernando, que só se apresentou na delegacia 36 horas após o homicídio doloso e “confessou” estar um pouco acima dos 50km/h. Nada vai acontecer com Fernando, que se matriculou na Mackenzie para estudar Engenharia, mas há três anos deixou de ser aluno. É sócio da F Andrade Ferro e Aço. Quanta ironia nesse nome.

Nada vai acontecer com os policiais militares que dispensaram o teste do bafômetro no local. Ingenuidade? Apenas? Policiais civis disseram que os PMs só comunicaram na delegacia “o acidente com morte” quase cinco horas depois. Negligência? Apenas? Os PMs foram ao hospital buscar o rapaz, mas a mãe nunca o levou pra lá. Mãe e filho foram pra casa e dormiram até 9:30 da manhã. Como é que Daniela Cristina, mãe de Fernando, conseguiu enganar os policiais? Deve ter uma lábia daquelas.

Nessa madrugada de domingo, um motorista de 52 anos trabalhava e respeitava os radares e as leis. Foi morto por Fernando. Deixou filhos inconsoláveis. Não só com a perda do pai, mas com a decisão da Justiça para Fernando responder em liberdade. Confiscaram o passaporte? O clamor público não justifica prisão preventiva. Verdade. Mas o que justifica a impunidade? Fernando apareceu e depôs, não sumiu. Não precisa sumir. O argumento da defesa é que foi “uma fatalidade”.

Essas duas palavras, Porsche e fatalidade, reacenderam minha memória. Em 2011, escrevi sobre um caso parecido. Marcelo Malvio Alves de Lima, empresário de 36 anos, dirigia um Porsche a 150km/h num bairro nobre de São Paulo, numa rua com velocidade máxima de 60km/h. Matou Carolina, uma jovem de 28 anos, arremessando o carro dela a 25 metros até colidir com um poste. Ela morreu na hora.

Marcelo admitiu para o delegado ter bebido “um pouco” e estar em velocidade não compatível. Chorou. Pagou fiança de R$ 300 mil para não ser preso. Oito anos depois, em 2019, foi condenado em júri popular a seis anos de regime semiaberto. Como já respondia em liberdade, continuou solto e não cumpriu a pena. “Tudo tem um porquê. A gente tem que aceitar. Aconteceu um acidente, ela faleceu, com certeza isso estava nos planos de Deus, foi uma fatalidade”. Não gostou de ficar conhecido como “o dono do Porsche”.

Ou seja, Fernando Sastre de Andrade Filho pode ficar tranquilo. Preso ele não vai ficar. Peça conselho ao Marcelo.

Uma vida se perde a cada 15 minutos no trânsito no Brasil. Olhe seu relógio e pense: cem brasileiros morrerão nas próximas 24 horas em ferragens, no asfalto e na calçada. Esses são os mortos. Sem contar os amputados e paraplégicos. Não basta educar, é preciso vigiar e punir. Mas quando a própria família mima, deseduca e acoberta, fica difícil.

Chega de culpar Deus, o destino e a fatalidade.

Fernando Sastre de Andrade Filho, 24 anos, dirigia o Porsche do pai e matou o motorista de aplicativo Orlando Viana — Foto: Reprodução de montagem G1
Fernando Sastre de Andrade Filho, 24 anos, dirigia o Porsche do pai e matou o motorista de aplicativo Orlando Viana — Foto: Reprodução de montagem G1
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