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Cultura

Ruth Rocha diz que reação contra a ciência hoje é ‘vergonhosa’

Aos 90 anos, preocupada com os rumos do país, a autora de clássicos da literatura infantil relança ‘Meu amigo dinossauro’, de 2006, com um final mais ecológico, e afirma que gostaria de escrever mais e melhor sobre a escravidão
A escritora Ruth Rocha: "A reação que vemos hoje contra a ciência é vergonhosa, de um atraso horroroso e me preocupa muito" Foto: Vânia Toledo / Divulgaçao
A escritora Ruth Rocha: "A reação que vemos hoje contra a ciência é vergonhosa, de um atraso horroroso e me preocupa muito" Foto: Vânia Toledo / Divulgaçao

Todos os dias, às 15h30, Ruth Rocha recebe um telefonema de sua irmã, Rilda. A escritora, que comemorou virtualmente seus 90 anos no dia 2 de março, não aguenta, com a vista cansada, passar muito tempo debruçada sobre um livro. Rilda reserva uma hora do dia para ler para Ruth ao telefone. Juntas, elas atravessaram as mais de 1.500 páginas de “Guerra e paz”, de Tolstói, e também o primeiro volume de “Escravidão”, de Laurentino Gomes, e “Uma terra prometida”, as memórias presidenciais de Barack Obama (504 e 764 páginas, respectivamente).

As duas irmãs são sociólogas e, às vezes, interrompem a leitura para conversar sobre temas políticos e econômicos que aparecem no meio dos livros. Também conversam sobre a situação do Brasil, que tem deixado Ruth, um dos maiores nomes da literatura infantil do país, “muito desgostosa”. Ela anda preocupada com a “grita contra a ciência” que une setores do governo e parte da sociedade.

— Estou achando que este governo vai atrasar o Brasil uns 50 anos — diz Ruth, por telefone. — Como foi que demos essa marcha à ré?

Defensora do conhecimento científico, Ruth aproveitou o confinamento para se dedicar a livros que lembram as crianças de que a Terra é redonda, alertá-las dos perigos ambientais dos combustíveis fósseis e reafirmar que o homem descende do macaco.

Este mês, sai uma nova edição de “Meu amigo dinossauro”, publicado originalmente em 2006. O livro, lançado pela Leiturinha, clube de assinatura de livros infantis, traz novas ilustrações de Elisabeth Teixeira e um final diferente, no qual o dinossauro Joaquim ensina que o petróleo, quando queima, “deixa o clima amalucado”. Na versão anterior, as crianças aprendiam que os dinossauros já tinham virado petróleo e lembravam os produtos originados do óleo negro: garrafas, brinquedos, gasolina e até o zíper da fantasia de Joaquim.

— A reação que vemos hoje contra a ciência é vergonhosa, de um atraso horroroso e me preocupa muito — diz Ruth, que, antes de começar a publicar suas histórias, foi orientadora educacional.

Ilustração do livro "Meu amigo dinossauro", de Ruth Rocha Foto: Agência O Globo
Ilustração do livro "Meu amigo dinossauro", de Ruth Rocha Foto: Agência O Globo

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Em setembro de 2020, em parceria com a filha, Mariana, Ruth lançou “Almanaque do Marcelo e da turma da rua nossa” (Salamandra). O livro apresenta os personagens mais queridos da escritora, como o protagonista de “Marcelo, Marmelo, Martelo”, e seu cãozinho Godofredo (ou Latildo). E também exorta crianças a evitar o uso de objetos de plástico, ensina a reciclar papel e afirma que quem diz que a Terra é plana “é um grandíssimo banana”.

Por falar em banana... Ruth passou os últimos meses escrevendo “O livro dos macacos”, ainda sem data de publicação, no qual recorda as histórias contadas pelo avô e explica como as espécies evoluíram.

Revisão sem perdas

Ruth não é a única a lançar um olhar atualizado sobre suas obras. Outros autores também têm revisitado seus livros para adequá-los aos novos tempos. Em março, o americano Dav Pilkey, criador da série de histórias em quadrinhos “Capitão Cueca”, autorizou a interrupção da distribuição de “As Aventuras de Ook e Gluk”, de 2010, depois que um leitor denunciou representações estereotipadas de personagens asiáticos presentes nos livros.

Ilustração do livro "Meu amigo dinossauro", de Ruth Rocha Foto: Agência O Globo
Ilustração do livro "Meu amigo dinossauro", de Ruth Rocha Foto: Agência O Globo

Ruth conta que já deu livros do Capitão Cueca de presente para os netos e elogia a disposição de autores em corrigir suas obras para livrá-las de preconceitos. No entanto, quando entram na conversa os livros de Monteiro Lobato, acusados de conteúdo racista, como ela própria lembra, Ruth diz que “aí é um pouco mais complicado”. Ela é contra intervenções no texto do criador do Sítio do Picapau Amarelo, que, em “Caçadas de Pedrinho”, descreve Tia Nastácia subindo numa árvore “que nem uma macaca de carvão”. Embora considere “muito grave” que crianças negras se sintam “depreciadas” ao ler representações preconceituosas de personagens parecidos com elas, Ruth defende que trechos problemáticos sejam explicados aos pequenos leitores, e não excluídos.

— Temos que falar do mesmo jeito que a Dona Benta explicava a Pedrinho, Narizinho e Emília por que havia guerra — afirma a escritora.

Ruth acredita que mesmo livros marcados pelo racismo podem render lições antirracistas.

— Em “Huckleberry Finn” (de Mark Twain) , que também já foi considerado racista, o protagonista passa uma porção de tempo viajando com um escravo fugido. Quando chegam à cidade, pensa em denunciá-lo porque tinha ouvido na igreja que era pecado ajudar escravos fugitivos, mas termina dizendo que preferiria ir para o inferno a trair seu amigo. É por cenas como essa que a literatura importa.

Capa da nova edição de "Meu amigo dinossauro", da escritora Ruth Rocha, ilustrado por Elisabeth Teixeira Foto: Divulgação
Capa da nova edição de "Meu amigo dinossauro", da escritora Ruth Rocha, ilustrado por Elisabeth Teixeira Foto: Divulgação

Ruth narrou a amizade entre um homem negro escravizado e um sinhozinho branco em “O amigo do rei”, de 2009. E confessa que gostaria de escrever mais sobre o tema.

— Gostaria de contar às crianças como a escravidão marcou a formação do Brasil e ensiná-las a não serem preconceituosas — afirma. — Tenho alguns heróis negros, como o Matias, de “O amigo do rei”, e o Catapimba. Mas gostaria de escrever mais e melhor sobre o assunto.

A literatura de Ruth sempre pregou valores progressistas —ela até adaptou a “Declaração Universal dos Direitos Humanos” para os pequenos, em parceria com o artista plástico Otávio Roth. Um dos maiores sucessos da escritora é “O reizinho mandão”. Publicado em 1973, durante a ditadura, o livro rendeu leituras políticas até dos adultos e ajudou pelo menos uma criança a não crescer autoritária.

— Uma menina de uns 7, 8 anos me disse que era muito mandona, mas que, depois de ler o livro, tinha mudado e não era mais — lembra Ruth, incapaz de segurar o riso.