Cultura

Secchin lança olhar abrangente e preciso sobre percurso de João Cabral de Mello Neto em livro

Obra do crítico sobre o poeta pernambucano, 'João Cabral de ponta a ponta' ganha edição ampliada; leia a resenha
O escritor João Cabral de Melo Neto Foto: Orlando Brito / Agência O Globo
O escritor João Cabral de Melo Neto Foto: Orlando Brito / Agência O Globo

Antes de se tornar poeta, João Cabral de Melo Neto desejou ser crítico literário. Sua “poesia crítica”, antilírica, está cheia de considerações sobre a criação poética e outros domínios artísticos. Era natural que atraísse a atenção dos leitores especializados.

Desde a publicação do seu livro de estreia, "Pedra do sono", em 1942, o poeta pernambucano sempre deu farta matéria para a reflexão dos críticos, que escreveram incontáveis resenhas e estudos de sua obra, primeiro na imprensa, depois na universidade.

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“Sinto que a minha poesia presta para um professor brilhar sobre ela”, lamentava-se Cabral. O problema, a seu ver, era que as análises, cada vez mais intrincadas, terminavam por complicar ainda mais os poemas. “Deve ser uma deficiência minha”, comentou, com ironia, numa entrevista de 1983. “Gostaria de escrever tão claro que não precisasse de explicações.”

João Cabral de Melo Neto, em 1990 Foto: Carlos Wrede
João Cabral de Melo Neto, em 1990 Foto: Carlos Wrede

Por coincidência, foi nesse mesmo ano que o volume João Cabral: a poesia do menos, de Antonio Carlos Secchin, venceu o prêmio literário do Instituto Nacional do Livro. Com o aparecimento desse estudo de fôlego, o professor da UFRJ, então com 30 anos de idade, veio juntar-se ao time dos grandes intérpretes do poeta, composto por Benedito Nunes, João Alexandre Barbosa, Luiz Costa Lima e José Guilherme Merquior, entre outros.

Ao contrário, porém, das leituras anteriores, teoricamente mais armadas, a obra do jovem crítico trazia uma novidade: a disposição de facilitar, e não complicar, a compreensão da poesia cabralina . Essa inclinação didática se manifesta não apenas em sua linguagem clara e direta, mas também no olhar abrangente, desmitificador, e no método igualmente aberto, sem compromisso com correntes teóricas, que acompanha com desenvoltura as múltiplas direções tomadas, ao longo de cinco décadas, pela obra de João Cabral.

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Em homenagem ao centenário do poeta, a Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) acaba de lançar uma nova edição, revista e ampliada, do livro de Secchin. Além do texto original, publicado em 1985 pela editora Duas Cidades, o volume inclui estudos acerca dos últimos livros de Cabral e de temas centrais de sua poesia, como o sertão nordestino e a Espanha, que já haviam aparecido em reedições anteriores.

Esse conjunto, cobrindo quarenta anos de produção crítica, foi acrescido agora de um ensaio sobre a relação de João Cabral com Carlos Drummond de Andrade , grandes amigos que tiveram uma misteriosa desavença. "João Cabral de ponta a ponta" traz ainda reproduções de dedicatórias, capas de livros, a entrevista dada pelo poeta a Secchin, em 1980, e sua última palestra para estudantes, ministrada na UFRJ, em 1993.

A leitura da poesia cabralina feita pelo crítico se orientou por uma hipótese central. De acordo com Secchin, a obra foi construída ”sob o prisma do menos”. Sua força intensificou-se pela subtração, por um constante exercício de depuração, aliado à decomposição da metáfora e à desmontagem do fenômeno lírico — operações que se revelam a cada passo ao leitor, na contramão de qualquer ilusionismo.

As análises pormenorizadas de Secchin dissecam os recursos, os procedimentos, o método compositivo, a estruturação de livros como "Uma faca só lâmina", "Quaderna" e "Serial". As leituras registram a coerência do projeto estético de Cabral, mas também exploram as tensões, os impasses e as inflexões de sua trajetória.

De ponta a ponta. Assim como fez o autor de "O rio", relatando toda a viagem do Capibaribe, desde a sua nascente, no sertão, até o litoral de Pernambuco, o crítico acompanha por inteiro o curso do poeta.

A ponta inicial: os versos de cunho ainda espiritualista, escritos pelo Cabral adolescente, no final dos anos 1930, que só vieram a público, por obra do próprio Secchin, em 1990, no volume Primeiros poemas.

A ponta final: os livros publicados pelo poeta depois de A educação pela pedra, de 1966, período que ele mesmo dizia ser menos rigoroso e inventivo, pois considerava impossível ao artista não se repetir depois de certa idade. Secchin escreveu sobre cada um dos livros dessa fase madura, distinguindo especialmente "A escola das facas", "Auto do frade" e "Agrestes".

Publicado em 1980, "A escola das facas" abriu uma nova perspectiva na obra de João Cabral, trazendo à tona o sujeito lírico e sua vivência histórica. Ao analisar os “poemas de iniciação” e as demais evocações autobiográficas — feitas por um poeta que sempre tivera o pudor de se confessar —, Secchin põe em evidência os conflitos do memorialista com a família e a ausência de reconciliação póstuma ou complacência sentimental. Segundo o crítico, os poemas renovam a leitura da obra de Cabral, revelando mais profundamente a história da construção da sua linguagem.

Embora aparentasse desprezar seus últimos livros, o autor se ressentia do fato de eles não serem tão valorizados pela crítica. Eis aí outra contribuição de Secchin. Além de ampliar o acesso à obra poética, não desejando brilhar mais do que ela, o crítico realizou o propósito de estudar, de um extremo ao outro, o admirável percurso de João Cabral.

Cotação: Ótimo

* Ivan Marques é professor de literatura brasileira na USP e preprara uma biografia de João Cabral de Melo Neto

Ficha Técnica: "João Cabral de ponta a ponta"

Autor: Antonio Carlos Secchin. Editora: Cepe. Páginas: 568.

Preço : R$ 60.