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Cultura

Sem palcos e pistas, artistas dão pausa na vida noturna por trabalhos diurnos na pandemia

Músicos, DJs e produtores trocam as madrugadas por profissões como marcenaria e fabricação de pães para se sustentarem em tempos de isolamento social
O cavaquinista, cantor e compositor Gabriel da Muda abriu uma padaria na Barra da Tijuca Foto: Leo Martins / Agência O Globo
O cavaquinista, cantor e compositor Gabriel da Muda abriu uma padaria na Barra da Tijuca Foto: Leo Martins / Agência O Globo

O ano de 2020 mostrou um movimento paradoxal no mercado musical brasileiro. Por um lado, a pandemia provocou um crescimento significativo do consumo de música no streaming, beneficiando artistas que já têm um bom catálogo disponível nas plataformas. Puxada por ele, que subiu 18,5%, a receita total do mercado cresceu 7,4% em relação a 2019, de acordo com o último relatório global da Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI). Ao mesmo tempo, a ausência de shows e turnês pelo país deixou um rastro negativo. Pesquisa do Observatório Itaú Cultural aponta que o setor da economia criativa perdeu 458 mil postos de trabalho na comparação do último trimestre de 2020 com o mesmo período do ano anterior. Uma retração de 6,4%, que levou muita gente a trocar a noite pelo dia.

É o caso do cantor e compositor cubano radicado no Rio René Ferrer, que deixou os instrumentos de lado e incluiu furadeira, chave de fenda e luvas de boxe em seu repertório no último ano. Como tinha experiência prévia como marceneiro em Cuba, agora tira o sustento de serviços gerais de manutenção de casa, além de dar aulas de boxe on-line. Ele, que vinha tocando em lugares como Casa Camolese, fazia um baile caribenho na Urca e participava de gravações antes da pandemia, sente que perdeu espaço no disputado setor da música no Brasil.

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— Eu estava no circuito, sempre fazendo show. Entrou a pandemia e não apareceu mais nada — lamenta o cubano. — É delicado. Você pode fazer sucesso e sobreviver na arte, mas não da arte, necessariamente.

O cantor e compositor Moacyr Luz vende camisetas do Samba do Trabalhador e parte da renda ajuda a equipe do Samba do Trabalhador que ficaram sem recursos na pandemia Foto: Marluci Martins
O cantor e compositor Moacyr Luz vende camisetas do Samba do Trabalhador e parte da renda ajuda a equipe do Samba do Trabalhador que ficaram sem recursos na pandemia Foto: Marluci Martins

DJ responsável pela formação musical de gerações de frequentadores de casas noturnas cariocas, Wilson Power “juntou um pouquinho” com o trabalho de três décadas na noite e abriu uma pequena empresa de importação e exportação, sua fonte de renda exclusiva enquanto houver um vírus à solta.

— Muitos amigos de profissão que não pensaram a longo prazo estão sofrendo arduamente com a pandemia porque, no Brasil, mesmo com a vacinação, será um longo inverno até as festas legalizadas voltarem — observa ele.

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As mesmas limitações que atingem as pistas fazem desandar a batucada. Anfitrião do Samba do Trabalhador, no bairro do Andaraí, Zona Norte do Rio, o compositor Moacyr Luz também virou “comerciante” e passou a vender camisetas temáticas da tradicional roda do Renascença Clube. Uma parte da renda é para ajudar os músicos que estão sem alternativa.

— O Samba do Trabalhador emprega no mínimo 12 pessoas. É complicado. Músico também tem filho para criar, condomínio para pagar. Vamos dar um mínimo para a rapaziada — diz, feliz com o resultado da iniciativa. — Sempre tivemos essas camisetas e compramos um monte para o nosso último show de 2020. Ficamos com elas paradas e precisando de dinheiro. Estamos vendendo uma média de R$ 3 mil por mês  de camisetas.

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Enquanto o Samba do Trabalhador não volta, o cantor Gabriel da Muda se dedica à padaria Fabro, que abriu com outro três amigos músicos na Barra da Tijuca:

— A música que me deu essa padaria aqui. Estou só longe dos palcos, mas a música está sempre em mim e na padaria — pondera.

O pão também move, em São Paulo, o músico paulistano Luccas Villela, que conta com 15 anos de estrada em diferentes bandas da cena independente. Ele forma a massa de 49% dos intérpretes e instrumentistas que tiveram as carreiras prejudicadas pelo coronavírus, segundo a pesquisa “Músicos e pandemia”, da União Brasileira dos Compositores (UBC) com a ESPM. Integrante da banda E A Terra Nunca Me Pareceu Tão Distante, que fez história como o primeiro grupo instrumental brasileiro a tocar no Lollapalooza (em 2019), ele abriu em agosto a Ble Padaria, que funciona com sistema de entregas.

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— Precisei arranjar subterfúgios para não ficar parado, precisava produzir qualquer coisa. Então toco e penso em novas receitas todos os dias — diz o baixista e baterista, cuja renda dependia dos shows.

No caso do designer gráfico Victor Ivanon, a pandemia mudou sua rotina para exclusivamente diurna. Antes, ele batia ponto numa agência de publicidade, mas dedicava as noites a seu alter ego, a drag queen Ivana Wonder, performer conhecida nos inferninhos da região central de São Paulo, agora em risco de extinção. Hoje, quando não está imerso em projetos gráficos, Victor tem usado o tempo livre para tocar violão e piano e incrementar as composições de seu futuro primeiro disco.

Conhecido em São Paulo como a drag queen Ivana Wonder, Victor Ivanon agora trabalha como designer gráfico Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo
Conhecido em São Paulo como a drag queen Ivana Wonder, Victor Ivanon agora trabalha como designer gráfico Foto: Edilson Dantas / Agência O Globo

— O emprego fixo me puxa para a realidade, enquanto a Ivana me leva pra longe — diz o cantor. — Faço drag porque me divirto. E não tem nada no mundo que pague o carinho das pessoas. Nunca vou desistir da música e da Ivana.

Das pistas à produção de orgânicos

Também órfão da noite por enquanto, o produtor Cabbet Araújo planejava reabrir a boate Fosfobox, tradicional em Copacabana, na Zona Portuária do Rio no ano passado. Com os planos suspensos pela pandemia, ele está inteiramente voltado a uma produção bem diferente.

— Em 2013, o ritmo da vida já estava muito estranho, comprei umas terras na região da Costa Verde e me certifiquei como produtor orgânico. Vendo para restaurantes e faço entregas de cestas a cada 15 dias em residências no Rio e na Costa Verde — conta Cabbet, que ainda espera reabrir a Fosfobox e tem ajudado a quem pode. — Alguns amigos trabalhadores da noite estão se juntando a mim na produção dos orgânicos e na preparação do sítio para futuros eventos.

A pesquisa “Músicos e pandemia”, da UBC com a ESPM, apontava que 30% dos entrevistados diziam ter perdido toda a renda com a crise sanitária. Era o caso da cantora e compositora Roberta Dittz, da banda de rock Canto Cego, do Complexo da Maré, no Rio. Ela está trabalhando com produções de vídeo. E tenta manter a banda como pode.

— A gente se inscreveu em vários editais, mas o que ganhamos só deu para tapar buracos — diz.

A banda Canto Cego da Maré. Na foto Ruth (bateria), Rodrigo (guitarra), Roberta (vocal), Magrão (baixo). Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo
A banda Canto Cego da Maré. Na foto Ruth (bateria), Rodrigo (guitarra), Roberta (vocal), Magrão (baixo). Foto: Marcos Ramos / Agência O Globo

A mesma pesquisa indicava que 83% dos músicos afirmavam nem pensar em mudar de carreira, apesar dos pesares. Desde a publicação, essa certeza pode ter ficado mais instável para alguns, como a cantora e compositora goiana Bruna Guimarães, líder da banda BRVNKS, que também já tocou no Lollapalooza. Acostumada a mudanças — recentemente, trocou de profissão, deixando o trabalho em tecnologia da informação na IBM para trabalhar com marketing e conteúdo para redes sociais, e ainda trocou os produtores musicais com quem trabalhava —, Bruna mostra os conflitos na profissão:

— Penso todos os dias em abandonar a música. Acho que é algo que todo mundo pensa. Mas, às vezes, penso que quero construir carreira, sair rodando o mundo e largar todo o resto.