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Cultura

Sem recursos federais há sete meses, Cinemateca Brasileira pode repetir a tragédia do Museu Nacional

Sem brigada de incêndio e manutenção de equipamentos, acervos como da Atlântida, da Vera Cruz, do Canal 100 e de Glauber Rocha estão em risco
Fachada da Cinemateca Brasileira, na Vila Clementino, em São Paulo; instituição funciona em antigo matadouro reformado Foto: Didão Barros / Wikimedia Commons
Fachada da Cinemateca Brasileira, na Vila Clementino, em São Paulo; instituição funciona em antigo matadouro reformado Foto: Didão Barros / Wikimedia Commons

SÃO PAULO — São 64 anos de uma trajetória importante, mas não exatamente tranquila. Responsável por abrigar 250 mil rolos de filmes — que contêm 44 mil títulos de curta, média e longa-metragens, além de programas de TV e registros de jogos de futebol —, a Cinemateca Brasileira já enfrentou, por exemplo, quatro incêndios. O mais recente, em fevereiro de 2016, destruiu definitivamente 270 títulos e outras 461 obras que tinham cópia de segurança.

Assistir a uma quinta tragédia em breve é algo que não surpreenderia funcionários e ativistas que denunciam a falta de repasses do governo federal para a manutenção da sede, na Vila Clementino, e um depósito, na Vila Leopoldina. O último local, aliás, enfrentou uma enchente em fevereiro , que danificou 113 mil cópias de DVDs.

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Nos últimos dias, a instituição encarou novos fatos. A brigada de incêndio, terceirizada, deixou de trabalhar em 26 de junho. No dia seguinte, a sede ficou sem luz pela manhã, por falha elétrica no bairro, e o gerador não funcionou — de qualquer forma, não haveria diesel para ligá-lo, dizem funcionários. Também debandou a empresa de manutenção do sistema de climatização, essencial para manter o acervo na temperatura correta. E a firma de segurança deu até meados deste mês para sair.

— Estamos correndo o risco de viver um novo Museu Nacional. É uma tragédia anunciada — diz o cineasta Roberto Gervitz, em referência ao incêndio na instituição no Rio que transformou em cinza 20 milhões de itens de seu acervo em setembro de 2018.

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O diretor de “Feliz ano velho” (1987) é um dos organizadores do movimento SOS Cinemateca. Em junho, o grupo fez um ato público e um manifesto endossado por mais de 70 associações, entre elas os festivais de Berlim e Cannes.

A comoção internacional não é à toa. A agonia da Cinemateca aumenta enquanto a falta de comando fica cada vez mais longe de respostas. O último susto veio na quinta-feira: a demissão de Heber Trigueiro do cargo de secretário nacional do Audiovisual, área responsável pela Cinemateca. O novo secretário especial da Cultura, o ator Mario Frias , ainda não empossou um substituto.

Funcionário de carreira, Trigueiro havia assumido na gestão de Regina Duarte — para quem, aliás, Jair Bolsonaro prometeu uma posição de chefia na Cinemateca após a saída da Secretaria Especial da Cultura. A vaga, que não existe, virou mais uma das dúvidas em torno da instituição.

O drama do comando se agravou em dezembro, quando o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, encerrou o contrato da Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto (Acerp) para a realização da TV Escola. Como havia um aditivo para a administração da Cinemateca, a situação virou um imbróglio jurídico — o acordo original vai até até março de 2021, e a Roquette Pinto continuou com recursos do próprio caixa. Agora a dívida chega a R$ 13 milhões, além das pendências anteriores (em 2019, dos R$ 13 milhões previstos, o governo entregou à Acerp só R$ 7 milhões). Uma greve por tempo indeterminado deve ter início amanhã. Procurada, a Acerp não respondeu até a conclusão da reportagem.

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Mario Frias e Marcelo Álvaro Antônio, ministro do Turismo, visitaram a Cinemateca em 23 de junho. No Instagram, publicaram o compromisso de “resolver o impasse”. Questionada sobre a solução, a pasta emitiu nota afirmando que “segue trabalhando para definir, dentro das competências institucionais e da legalidade, a forma ideal para o funcionamento pleno e a reincorporação da Cinemateca à União ”.

Enquanto a esfera federal diz se mexer, a cidade corre por fora. Prefeito de São Paulo, Bruno Covas cogitou propor um plano de municipalização. Professor da USP e diretor da instituição entre 1987 e 1992, Carlos Augusto Calil era crítico à gestão via Acerp e também é cético sobre a municipalização.

— A prefeitura está blefando politicamente. Outros órgãos municipais da cultura, como o Centro Cultural São Paulo, já estão à míngua — diz Calil. —Não é hora de discutir o modelo de gestão. É horar de socorrer a Cinemateca.

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A falta de solução preocupa também os familiares de cineastas que confiaram à instituição a preservação de seus acervos.

— Ninguém tem condições de ter negativos em casa. A conservação exige conhecimento técnico, e a Cinemateca tem pessoas qualificadas para isso — enfatiza a apresentadora e cineasta Marina Person, que tem no acervo obras suas e de seu pai, Luís Sérgio Person, como o clássico “São Paulo S/A” (1965).

Vice-presidente da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual, Débora Butruce lembra “Limite”, de Mário Peixoto, como um exemplo do que está em risco. O filme de 1931 foi esquecido no seu tempo, mas depois foi redescoberto como obra-prima experimental. A Cinemateca fez seu restauro e o conserva copiado em acetato de celulose. O material original, em nitrato de celulose (usado até os anos 1950, esse tipo de filme entra em autocombustão se a temperatura chega aos 40 graus), já não existe há décadas.

— O que mais dói é pensar em obras que não tiveram tempo para ser redescobertas, e correm o risco de nunca chegar a ser — frisa Débora.

Por dentro do acervo

  • O acervo abrange a produção audiovisual do país desde 1897 até a atualidade.
  • São 250 mil rolos de filmes, que compõem cerca de 44 mil títulos, entre curtas, médias e longas-metragens, programas de TV, cenas de jogos de futebol, filmes publicitários e institucionais e até vídeos domésticos amadores.
  • Está arquivado também 1 milhão de documentos, como cartazes, roteiros, storyboards, livros, revistas especializadas, recortes de jornal e correspondências trocadas por pessoas do meio do audiovisual.
  • Uma parte disso tudo, cerca de 10 mil itens, está disponível on-line no Banco de Conteúdos Culturais da Cinemateca ( www.bcc.org.br ).
  • O número de materiais que o lugar precisa preservar está em constante expansão porque cada filme brasileiro feito com recursos públicos precisa ser depositado lá, pela Lei do Audiovisual. Além disso, o acervo cresce por meio de doações. Quando isso acontece, os donos dos filmes não perdem seus direitos autorais, mas a Cinemateca passa a ser responsável por guardar e proteger as obras.

Tesouros da Cinemateca

  • O experimental “Limite” (1931), de Mário Peixoto, não fez sucesso em seu tempo, mas foi alçado ao posto de obra-prima cult décadas depois; além dele, a Cinemateca guarda grande parte do que restou do cinema mudo brasileiro. Os títulos dessa época têm uma fragilidade extra por serem de nitrato de celulose, material que pode entrar em autocombustão.
Cena do filme "Limite", de Mário Peixoto Foto: Reprodução
Cena do filme "Limite", de Mário Peixoto Foto: Reprodução
  • “O Cangaceiro” (1953), de Lima Barreto, é considerado o primeiro filme brasileiro a ter reconhecimento internacional. Em Cannes, foi eleito o melhor filme de aventura daquele ano. A produção foi feita na extinta companhia cinematográfica Vera Cruz, cujo acervo foi passado à Cinemateca. Outros clássicos do estúdio são os filmes de Mazzaropi.
  • O arquivo completo de Glauber Rocha, maior expoente do cinema novo, está na Cinemateca. Além da filmografia, que inclui títulos como “Deus e o diabo na terra do sol” (1964), estão arquivados mais de 2 mil documentos do cineasta. São roteiros, desenhos, cartas e materiais jornalísticos que ele guardou.
Cena de "Deus e o diabo na terra do sol", filme de Glauber Rocha; em cena, os atores Geraldo del Rey e Yoná Magalhães Foto: Divulgação
Cena de "Deus e o diabo na terra do sol", filme de Glauber Rocha; em cena, os atores Geraldo del Rey e Yoná Magalhães Foto: Divulgação
  • Todo o arquivo da primeira emissora de televisão do Brasil, a TV Tupi, está na instituição. São três décadas de programas de todos os tipos, de telejornalismo a novelas, passando por atrações que ajudaram a criar a fama de nomes da música como Roberto Carlos.
  • Outro arquivo depositado na Cinemateca é o do estúdio Atlântida, que, em duas décadas de existência, produziu clássicos da chanchada com estrelas como Grande Otelo e Oscarito.
  • O local é também a casa do acervo do Canal 100, essencial para a memória do futebol brasileiro. Seus filmes registram jogos em que, por exemplo, Pelé e Garrincha brilharam.

Correção: diferentemente do escrito na primeira versão do texto, a Cinemateca não guarda o filme "Limite" em nitrato de celulose, como ele foi originalmente gravado, e sim copiado em acetato de celulose. A reportagem foi alterada em 6 de julho, às 20h55.