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Cultura

Sérgio Medeiros transforma em imagens 'Finnegans Wake', o romance intraduzível de James Joyce

Considerado um desafio linguístico, derradeiro livro do autor de 'Ulisses' ganha do poeta radicado em Santa Catarina uma versão visual que parte da Ilha do Breasil, citada na obra
Retratoo de HCE, um dos personagens de "Finnegans Wake", feito pelo poeta e artista visual Sérgio Medeiros Foto: Sérgio Medeiros / Reprodução
Retratoo de HCE, um dos personagens de "Finnegans Wake", feito pelo poeta e artista visual Sérgio Medeiros Foto: Sérgio Medeiros / Reprodução

Em “Finnegans Wake” , o livro-delírio que se pôs a escrever após a publicação de “Ulisses” (1922), James Joyce repete várias vezes a expressão “Hy Brazil”, em referência não ao nosso país (ainda que um trecho mencione o Rio de Janeiro), mas a uma mítica Ilha do Breasil, localizada a Oeste da Irlanda e que chega a aparecer em alguns mapas medievais. Coberta por espessa névoa, a Ilha do Breasil só pode ser contemplada a olho nu uma vez a cada sete anos, mas jamais alcançada. Diz a lenda que a ilha-fantasma teria descido em direção ao Equador, até a altura da Ilha da Madeira. O poeta, artista visual e ensaísta Sérgio Medeiros acredita que ela continuou sua trajetória rumo ao Sul e tenha se transformado na Ilha de Santa Catarina, onde ele vive.

— A Ilha do Breasil, que aparece e desaparece, é símbolo do mundo ilimitado de Joyce, que sempre nos escapa — afirma Medeiros em conversa telefônica com o GLOBO, de Florianópolis.

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Medeiros se apaixonou por Joyce na adolescência, ao acompanhar as perambulações de Leopold Bloom por Dublin, no clássico “Ulisses”, romance que se passa em um único dia, o 16 de junho de 1904, que ficou conhecido como “Bloomsday”. Coincidentemente, também é a data de aniversário de Medeiros, que completa 61 anos hoje e, para celebrar mais um dia dedicado à obra de Joyce, antecipa em seu site sua nova homenagem ao escritor, divulgando algumas das imagens de “A visual Finnegans Wake on the Island of Breasil” . O livro, que será lançado em formato digital em 2022 pela Iluminuras, reúne 633 ilustrações de Medeiros inspiradas em cada uma das páginas da edição original do derradeiro romance de Joyce, considerado uma obra “intraduzível”.

Estrutura circular

Medeiros, contudo, não se intimidou e decidiu transformar em traços e cores a história desenvolvida por Joyce até 1939, quando foi interrompido pela degradação de sua visão e da saúde mental de sua filha, Lucia.

O cenário imaginado pelo artista para o seu “Finnegans” visual não poderia ser outro: a Ilha de Breasil. Uma das últimas aparições do lugar em “Finnegan’s Wake” é quase no final do livro, quando o protagonista HCE (sigla para “Here Comes Everybody”, que o tradutor Donaldo Schüler definiu como “O homem a caminho está”) chega à ilha e lamenta ter perdido sua “selvageria”. Medeiros alerta: Joyce não atribui um sentido negativo à selvageria. Para ele, o selvagem é quem está mais próximo do paganismo do que do Ocidente cristão. O artista garante que o objetivo de sua obra visual é devolver a Joyce um pouco da selvageria que ele perdeu quando fez HCE aportar na Ilha de Breasil.

Representação do manuscrito de "Finnegans Wake", citado na própria obra de Joyce, feita pelo poeta e artista visual Sérgio Medeiros Foto: Sérgio Medeiros / Reprodução
Representação do manuscrito de "Finnegans Wake", citado na própria obra de Joyce, feita pelo poeta e artista visual Sérgio Medeiros Foto: Sérgio Medeiros / Reprodução

As ilustrações de Medeiros — que, em parceria com a mulher, a escritora e tradutora Dirce Waltrick do Amarante, já verteu para o português cartas de Joyce para sua esposa, Nora Barnacle, colaborou com a tradução da coletânea “De santos e sábios”, escritos estéticos e políticos do autor irlandês, e ainda tem dois livros de poemas inspirados em “Ulisses” (“Totens” e “Trio pagão”) — seguem a estrutura circular do romance de Joyce. Começam abstratas, marcadas por traços fortes e tintas coloridas. Depois, é possível identificar algumas figuras como um gramofone, uma mão segurando um espanador e dois rostos que se aproximam num beijo. No final, voltam as formas abstratas.

— Ao reler recentemente cada página de “Finnegans Wake” a fim de criar um desenho que pudesse resumi-la ou representá-la, tive de escolher apenas uma imagem ou uma palavra entre numerosas outras. Não busquei a palavra certa, ou o que os franceses denominam “le mot juste”, mas acolhi apenas aquela que, na releitura de cada página do romance, se impôs a mim — explica Medeiros, que já vem trabalhando sua própria poesia visualmente. — A partir desse fragmento criei uma imagem que, a meu ver, deveria ser entendida como metáfora visual do texto integral.

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“Finnegans Wake” acompanha personagens como HCE, dono de um pub, e seus filhos Shaum, carteiro, e Shem, um escritor a quem faltam os pés e depende do irmão para espalhar sua palavra. No romance, Joyce aperfeiçoa a técnica do fluxo de consciência, que já chamava atenção em “Ulisses”, e compõe um romance que é, na verdade, um longo poema em prosa erguido a partir de fragmentos em 64 idiomas, além do inglês. Daí sua fama de intraduzível.

Retrato de Shem, um dos personagens de "Finnegans Wake", de James Joyce, feito pelo poeta e artista visual Sérgio Medeiros Foto: Sérgio Medeiros / Reprodução
Retrato de Shem, um dos personagens de "Finnegans Wake", de James Joyce, feito pelo poeta e artista visual Sérgio Medeiros Foto: Sérgio Medeiros / Reprodução

Entre os desenhos de Medeiros que ilustram essa página estão um retrato de Shem (com seus pés rasurados) e um que emula o manuscrito do próprio “Finnegans Wake”, citado inúmeras vezes no romance.

— O manuscrito aparece na lama. Para Joyce, literatura é lixo. É lixotura, conjunção de todas as línguas e civilizações, do abjeto com o sublime que sempre é descartada e depois se recupera — diz Medeiros. — A ilustração é verde em referência a um cinturão cintilante que HCE usa num momento.