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Cultura

Sertão ressurge em filme, série, livros, peças e músicas

O resultado são imagens da região tão ricas quanto indecifráveis
Esfinge sertaneja criada por Manu Maltez para O GLOBO Foto: Divulgação / Arte de Manu Maltez
Esfinge sertaneja criada por Manu Maltez para O GLOBO Foto: Divulgação / Arte de Manu Maltez

RIO — A corrupção surge impregnada de aridez em “Onde nascem os fortes”. No “Grande sertão: veredas” encenado por Bia Lessa, a obra de Guimarães Rosa ganha a visualidade de 2018. E a força da grana que vem do agrobusiness ergue e destrói coisas belas em “Boi neon” (2015). Paisagem essencial da cultura brasileira, traduzida por olhares de artistas como Luiz Gonzaga e Glauber Rocha, o sertão vem sendo relido em obras que propõem uma atualização desse imaginário. Um novo sertão no qual questões contemporâneas dialogam com tradições ancestrais, e tradições contemporâneas dialogam com questões ancestrais. Como resultado, nascem imagens tão ricas quanto indecifráveis, como sugere a esfinge de Manu Maltez desenhada especialmente para ilustrar esta reportagem.

ARTIGO: O sertão do século XXI se torna mais do que uma região

Paulistano de família paraibana, Manu é um dos leitores desse novo sertão. No livro-disco “O rabequeiro maneta e a fúria da natureza”, que escreveu, compôs e ilustrou, ele constrói uma narrativa que cruza a defesa da honra do sertanejo, a rede social do sanfoneiro, onças e uma cantora transexual.

— Quando andamos por esses lugares, vemos o quanto carregamos dos símbolos dali. Ao mesmo tempo, reconhecemos a coisa tradicionalista, opressora. A forma como a trans aparece em “O rabequeiro maneta” toca nisso — explica. — Por outro lado, o sertão foi o Brasil que mais mudou nos últimos 15 anos.

Sertão, por Manu Maltez Foto: Divulgação / Arte de Manu Maltes
Sertão, por Manu Maltez Foto: Divulgação / Arte de Manu Maltes

Um dos autores de “Onde nascem os fortes”, George Moura cita influências que vão de Rosa, Graciliano e João Cabral de Melo Neto a Tarkovsky, Iñárritu e Herzog. A atração que o espaço exerce, defende ele, vem da ideia de que tudo ali pode estar por ser construído:

— O sertão, assim como o deserto e o oeste (americano), tem uma simbologia própria. No caso da série, a cidade fictícia de Sertão espelha o Brasil de hoje: um lugar onde há o desejo de ser moderno e a condenação de permanecer arcaico.

A trilha sonora ajuda a definir os limites vastos desse território.

— O jornalista e escritor Carlos Marcelo disse que era a única série de TV no mundo que tem Fagner, Rosana e Velvet Underground na mesma trilha. É esse o sertão contemporâneo.

“Reconhecemos a coisa tradicionalista. Mas o sertão foi o Brasil que mais mudou nos últimos 15 anos”

Manu Maltez
Autor do livro-disco “O rabequeiro maneta e a fúria da natureza”

Música também é o caminho usado pelo Cordel do Fogo Encantado para traçar a região, partindo da mitologia sertaneja para criar sua própria. O pernambucano Lirinha, vocalista do grupo, identifica dois sertões. Um é o folclórico, dos estereótipos encarnados na compreensão que se tem de Luiz Gonzaga, por exemplo. O outro, vivo, dinâmico, é o que ele e sua banda procuram abraçar.

— Esse lado arcaico se tornou reservatório de uma tradição escravocrata, machista, da agricultura irresponsável. Reúne vários elementos que não correspondem a uma realidade maior — avalia Lirinha. — Luiz Gonzaga é percebido como um ícone da tradição, da raiz, do sertão museológico. Mas sua inteligência artística corresponde ao sertão vivo. Na sua criação, ele cruza o vaqueiro e o cangaceiro para gerar um personagem novo. Faz o que é próprio da arte, cria um mundo imaginário.

“Carioca, filha de paulistas, apaixonada pela região do Cariri”, como ela mesma se define, a atriz e cantora Letícia Persiles bebe e renova esse sertão musical. Vocalista da banda Manacá, ela agora se prepara para surgir em um novo projeto, o Cabaré do Xote Moderno. E cita o Mestre Expedito Seleiro como grande inspiração:

“O cenário da série é um lugar onde há o desejo de ser moderno e a condenação de permanecer arcaico”

George Moura
Um dos autores da série “Onde nascem os fortes”

— O pai dele criou as sandálias quadradas do Lampião. Com o enfraquecimento da cultura dos vaqueiros, a extinção dos cangaceiros, ele e o pai pensaram que era o fim da arte dos seleiros. Foi então que Mestre Expedito deixou de lado a produção de gibões e selas e apostou em sandálias e bolsas femininas. Hoje seu trabalho é reconhecido mundialmente.

Letícia chama a atenção para a pouca presença feminina na construção histórica do imaginário sertanejo. No cenário contemporâneo, porém, ela enfileira artistas mulheres: tem a poeta Jenyffer Nascimento e a cordelista Jarid Arraes. Mas tem também Lívia Matos, que é cantora, compositora, artista circense e acordeonista. Ou as cantoras Juliana Linhares (do Pietá) e Alessandra Leão, também percussionista e compositora.

— O que se chama de sertão, essa construção simbólica, é feito de muitas camadas. No último livro do Ronaldo Correia de Brito, “Dora sem véu”, há uma faceta triste do sertão contemporâneo, que é a violência, o feminicídio. As feridas brasileiras estão espalhadas. A criminalidade chegou às pequenas cidades, e já não é mais possível pensar na imagem pura de um sertanejo forte e cheio de fé — diz Socorro Accioli, escritora cearense, autora de “A cabeça do santo”.

“Luiz Gonzaga é tido como ícone do sertão museológico. Mas sua inteligência artística é do sertão vivo”

Lirinha
Vocalista do Cordel do Fogo Encantado

No livro, ela mergulha numa espécie de realismo fantástico a partir da jornada de um rapaz que se abriga na cabeça de uma estátua gigantesca e inacabada de Santo Antônio. Fantasia e realidade se aproximam frequentemente no sertão. O personagem principal do premiado filme “Boi neon” é fictício sim. Mas é todo inspirado num sujeito real: um vaqueiro que trabalhava com gado e moda, como explica o diretor Gabriel Mascaro:

— Não esqueço a forma como ele ritualizava a limpeza dos rabos do boi e em seguida sentava na máquina de costura. Esse foi o ponto de partida para criar o personagem, que une no ofício força e delicadeza, bravura e sensibilidade, violência e afeto. Tudo isso cabe no sertão.

O que existe, portanto, é uma cena nova e pulsante, como a que se vê no “Grande sertão: veredas” dirigido por Bia Lessa. Na peça, em vez de retratar particularidades da região nos dias de hoje, Bia busca uma essência atemporal. O cenário, que usa andaimes, e o figurino, quase todo preto, não evocam paisagens ou figuras sertanejas.

— O poder imagético do sertão está na aridez, no vazio — defende Bia. — Nesse sentido, ele será sempre uma imagem reveladora de humanidades. Algo sem passado e sem presente, com certa eternidade, como são eternas as questões sobre a existência. O sertão é mais rico quando se coloca como é: terra, secura, espinho, aguinha que refresca às vezes, veredas poucas. Daí ele se impõe como uma imagem que sintetiza tudo. Tanta vida só encontramos na aridez da morte, e tanta morte só encontramos no pico da vida.