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Cultura Coronavírus

Shakespeare em quarentena: como a peste bubônica aparece nas peças do bardo

Nos textos do dramaturgo inglês, a doença é maldição e metáfora para o amor – mas não mata ninguém
Cena da peça "O Rei Lear" com Sérgio Brito, Paulo Goulart e Fernanda Torres, em 1983 Foto: Arquivo
Cena da peça "O Rei Lear" com Sérgio Brito, Paulo Goulart e Fernanda Torres, em 1983 Foto: Arquivo

SÃO PAULO – Entre 1603 e 1613, surtos periódicos de peste bubônica mataram quase um décimo da população de Londres. Quando os óbitos passavam de 30 por semana, as autoridades baixavam quarentena. Bordéis e teatros eram fechados, e os doentes, trancafiados por 28 dias em suas casas, sob a vigília de guardas que pintavam uma cruz vermelha na porta. Nesse período, todos os teatros da capital inglesa estiveram parados 60% do tempo.

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Sócio de um deles, o Globe Theatre, William Shakespeare (1564-1616) passou as quarentenas escrevendo. A doença, que dava febre e dores tão terríveis que doentes se jogavam das janelas, costumava matar a partir do décimo dia. Os mais vulneráveis tinham de 10 a 35 anos. Nesse cenário de horror, o Bardo, já em sua fase madura, criou algumas de suas peças mais famosas. De 1605 a 1606, escreveu “Rei Lear”, “Macbeth” e “Antônio e Cleópatra”. Em “Macbeth”, um personagem lamenta que, naqueles dias, expiravam-se “as vidas dos homens de bem antes de fenecerem as flores de seus chapéus”.

O dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616) Foto: Reprodução
O dramaturgo inglês William Shakespeare (1564-1616) Foto: Reprodução

— Depois de 1603, ele não produziu mais comédias românticas e, sim, peças mais sombrias, que retratavam o desespero que tomava as ruas naqueles dias — diz James Shapiro, professor da Universidade Columbia, nos Estados Unidos e autor de “The Year of Lear: Shakespeare in 1606” (“O ano de Lear: Shakespeare em 1606”). — “Rei Lear”, escrita entre o fim de 1605 e o começo de 1606, quando a peste deu uma breve trégua, é sua peça mais apocalíptica. Todo mundo morre!

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“Ainda és minha filha; ou melhor, uma doença na carne, que sou forçado a reconhecer que é minha; és um tumor, uma ferida inchada, um furúnculo apustemado em meu sangue”, diz o Rei Lear a sua primogênita, Goneril. Quando a tragédia estreou, em fins de 1606, na corte de Jaime I da Inglaterra, a plateia ouviu nervosa o rei louco. A palavra usada para doença, plague , em inglês, remetia justamente à peste.

Shakespeare passou a vida fugindo dela, que já matava desde muito antes. Era recém-nascido quando a epidemia vitimou um quarto da população de Stratford-upon-Avon. Em 1592, a doença fechou os teatros por seis meses. E ele usou a quarentena para compor o poema narrativo “Vênus e Adônis”. Em 1606, a peste matou Marie Mountjoy, dona da casa que ele alugava em Londres.

Ainda que a doença estivesse sempre à espreita, ele não a usou para matar personagens. As referências a ela são quase sempre indiretas.

— Por causa da censura, Shakespeare recorria a terras distantes ou ao passado para falar do presente — explica Daniel Pollack-Pelzner, professor da Linfield College, nos EUA. — Para falar da sucessão da Rainha Elizabeth, escreveu sobre uma disputa anterior em “Ricardo III”. Em “O mercador de Veneza”, critica a agiotagem em Londres. No caso da peste, a linguagem da contaminação aparece muito. Em “Noite de reis”, ao se apaixonar por Olívia, o Duque Orsino diz que ela “purgava o ar de todas as pestilências”.

O amor de Orsino não contagia Olívia, mas as metáforas pestilentas, sim. Quando se apaixona por Cesário, um dos serviçais do duque, ela lamenta: “assim tão depressa pode alguém contagiar-se dessa praga?”. No entanto, na maioria das peças de Shakespeare, referências à peste costumam vir de personagens irados. Em “A tempestade”, o escravo Calibã amaldiçoa Próspero, Duque de Milão: “que a peste vermelha vos carregue”.

Ao ser ferido, Mercúcio, amigo de Romeu, pede que a peste castigue os Montéquio e os Capuleto. A doença, aliás, é responsável pela mais importante reviravolta da peça, escrita nos anos 1590. Frei João não consegue entregar a Romeu a mensagem de Julieta porque a quarentena o impede: “A patrulha/ Foi à casa onde estávamos, nós dois,/ Suspeitando que a praga ali imperasse/ Selou as portas, nos prendeu lá dentro,/ E, por isso, eu não pude ir a Mântua”.

Os estudiosos ouvidos pelo GLOBO lembram que o isolamento social imposto pela pandemia da Covid-19 fez muita gente voltar aos textos de Shakespeare em busca de referências à peste.

— Uma coisa é ler “Romeu e Julieta” quando se é jovem e apaixonado ou, na minha idade, quando se entende as preocupações do pai de Julieta — diz Shapiro, 64 anos. — Agora, acordo aflito e me pergunto como Shakespeare reagia às notícias da peste. Viver a epidemia do novo coronavírus tem me inspirado novas leituras de Shakespeare, que nunca me ocorreram antes.

O jornalista britânico Andrew Dickson, autor de “The Globe Guide to Shakespeare”, um guia das peças do Bardo, também tem aproveitado a quarentena para reler o escritor, “mas não ‘Rei Lear’, que é muito deprimente”:

— Sempre é tempo de ler Shakespeare. E de assistir às suas peças. Enquanto não voltarmos ao teatro, podemos ver no YouTube encenações e filmes baseados na sua dramaturgia . Pretendo reler os sonetos. São poemas introspectivos que combinam com o isolamento.