Cultura

Silvio Guindane: ‘O ator negro ainda está dentro de uma caixinha’

Protagonista de ‘A divisão’ e prestes a estrear como um professor na série ‘Segunda chamada’, da Globo, ele adapta ‘Tempo de despertar’ para o teatro e diz que a representatividade negra no audiovisual brasileiro ainda reforça estereótipos
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leg: silvio guindane Foto: EduViana! / Divulgação
exclusiva SC leg: silvio guindane Foto: EduViana! / Divulgação

RIO — ‘Olha ao redor, sou o único negro neste lugar”, repara Silvio Guindane , enquanto toma café com a repórter no bar do Parque Lage. Acostumado à posição de exceção (“também sou o único negro do meu prédio, na Lagoa”), o intérprete do delegado Mendonça, protagonista da série “ A divisão ” (no ar no Globoplay), comemora a escalação para um personagem “fora do estereótipo”, define.

— Poderia ser interpretado por qualquer ator, não, necessariamente, um negro — afirma Guindane, para quem a representatividade negra no audiovisual brasileiro ainda é carregada de chavões. — Dá pra contar nos dedos os filmes em que o protagonista é preto e isso não ter ligação com ser pobre, da favela ou escravo...

Ele diz falar sobre a questão profissional “sem mágoa” (“entendi cedo qual era o jogo, que não me encaixava no padrão”). Mas sua jugular salta do pescoço quando narra o racismo cotidiano (“quantas vezes ouvi ‘ah, você nem é tão preto assim, né, Silvinho?’”). Aos 35 anos, o ator, nascido na Baixada Fluminense, criado na Ilha do Governador pela mãe (professora) e pelo pai (comerciante), soma 21 anos de carreira, levando a sério a composição de seus papéis. Morou na Rocinha para o laboratório de “Como nascem os anjos” (filme em que estreou como ator, aos 12 anos), e no Capão Redondo, ao rodar “Bróder”. Agora, mergulhou no universo das escolas públicas para viver um professor na série “ Segunda chamada ”, sobre ensino para adultos, que estreia em 8 de outubro, na Globo. Também roteirista e diretor, está adaptando “Tempo de despertar”, de Oliver Sacks, para o teatro e escreve a segunda temporada de “ O dono do lar ”, série do Multishow. Ano que vem, roda seu primeiro filme, “Miss Saigon”, sobre os bastidores de um baile charme. Com mil projetos ao mesmo tempo, não sobra tempo para as redes sociais, que ele se recusa a ter.

— É muita gente pra dar atenção e coisa pra fazer — afirma o pai de João, de 2 anos, fruto do relacionamento com a diretora Julia Rezende. — Meu sonho é buscar meu filho na creche todos os dias.

Você fez imersão de semanas na inteligência da Polícia Civil e em comunidades para “A divisão”. Como foi?

Tenso, mas importante para aprender coisas técnicas. Tenho aversão a armas, mas elas são uma extensão do corpo do meu personagem. Agora, monto e desmonto um fuzil em dois minutos. Foi importante entender o pensamento desses caras, a verdade que têm na cabeça. O grande mérito da série é que não defende uma verdade única, os personagens são contraditórios. A gente viu os dois lados.

Na pesquisa em escolas para “Segunda chamada”, o que mais te marcou?

A dedicação e o compromisso dos professores. Dão aula o dia inteiro, não ganham o suficiente e estão ali, à noite, trabalhando com toda a paciência do mundo. O esforço e dignidade do aluno, em busca do sonho de escrever seu próprio nome e se formar, também me emocionaram. É uma realidade que reflete uma política que não dá subsídio a todos. Propaga um método de quem domina e quem é dominado, a continuação de uma certa escravidão. E sem informação é difícil igualar ou começar um discurso hipócrita de meritocracia.

Falta consciência política também...

Acho que tivemos um buraco no Brasil, duas gerações que não quiseram saber de política pós-ditadura militar. Aquela coisa de futebol, política e religião não se discute era uma forma de nossos pais nos blindarem. Porque durante 20 anos discutir política dava cadeia. Parte do resultado disso é momento político anacrônico que estamos passando. Sempre tive contato com quem paga o preço mais direto por isso. Sou negro, nasci na Baixada e tive muito contato com periferias através do meu trabalho.

Sofreu situações de racismo?

Muitas. Se eu tô de sunga na praia, sou um menino da Cruzada. Além do racismo histórico, que faz com que mais de 60% da população pobre seja negra, há o preconceito social. Ser preto não é problema no Brasil se você estiver bem vestido. Aí é “vamos engolir esse negão aí, o carro dele é maneiro, mora aqui do lado”. Uma vez, fui pedir para deixar minhas coisas com uma senhora para dar um mergulho na praia. Cheguei perto, e ela disse “Não vem, não”. Achou que eu ia assaltar, pedir dinheiro. Quando virei, ela falou “a gente tem que tomar cuidado com esse tipo de gente”. Aí, respondi que ela deveria ser presa.

E profissionalmente?

Desde cedo, entendi qual era o jogo. Me olho no espelho e falo: “É isso aí, não vou pegar um personagem porque não estou dentro dos padrões”. Aos poucos, esse padrões estão mudando. O público está sentindo a necessidade de ser visto.

Como avalia a representação do negro na TV e no cinema brasileiro?

Ele sempre existiu dentro do nosso teatro e do audiovisual. Mas Antonio Pitanga, no Cinema Novo, foi o primeiro a colocar em cena uma interpretação que não era subserviente. Antes, o negro poderia até ser protagonista, mas estava dentro de um contexto “ator negro”. Pitanga foi porta-voz da elite classe média que queria falar. Foi um marco que, ao longo dos anos, se perdeu no cinema e TV. Ainda são poucos filmes em que o ator negro faz um personagem que poderia ser de qualquer ator. Dá pra contar nos dedos os protagonistas negros que não são pobres, da favela ou escravos. “O homem que copiava”, “Mare nostrum”, “A divisão”... É preciso a representatividade de se escolher um ator negro e, a partir daí, construir o contexto. O ator negro ainda está numa caixinha de ter algo na sinopse que indique que o personagem é negro.

Você está escrevendo uma peça nova? Fala de que?

É sobre um amor na terceira idade. Um casal que se conheceu na ditadura militar. Ela foi exilada, ele, ficou, e se reencontram anos depois. Estava com dificuldade de andar com esse texto e o Domingos Oliveira, pouco antes antes de morrer, me disse: “Silvio, você tem que fazer o velho que tem dentro de você, porque você é mais velho do que eu”.

Você tem muitos amigos mais velhos, né?

Pitanga é padrinho do meu filho, criou dois filhos brilhantemente. José Joffily, Nonato Estrela, Murilo Salles, o falecido ( Hugo ) Carvana, Roberto Bomtempo, Walter Lima Jr... Meu filho está cercado de avôs. Sou contador de história e os velhos contam história... Meu pai separou da minha mãe e eu era muito novo, então busquei a presença dessas figuras mais velhas.