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Cultura

Slavoj Žižek: coronavírus trará socialismo VIP, capitalismo de desastre ou algo novo?

Filósofo escreveu um livro de intervenção sobre a pandemia; leia trecho
Trabalhadores no Brooklyn Navy Yard, antigo estaleiro que abriga pequenas fábricas, todas no momento dedicadas à produção de equipamento médico de proteção contra a Covid-19 Foto: ANGELA WEISS / AFP
Trabalhadores no Brooklyn Navy Yard, antigo estaleiro que abriga pequenas fábricas, todas no momento dedicadas à produção de equipamento médico de proteção contra a Covid-19 Foto: ANGELA WEISS / AFP

Nos últimos dias eu às vezes me pego desejando ter logo contraído o coronavírus — assim, isso ao menos poria fim a essa incerteza debilitante… Um sinal claro de como minha ansiedade está crescendo é a forma pela qual tenho me relacionado com o sono. Até uma semana atrás, eu aguardava ansiosamente chegar o anoitecer, na esperança de que finalmente poderia escapar para o sono e me esquecer de todos os medos da minha vida cotidiana… Agora, é quase o oposto: estou com medo de dormir porque os pesadelos me assombram em meus sonhos e têm me feito despertar no meio da noite, em pânico — pesadelos sobre a realidade que me aguarda.

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Que realidade? Ultimamente temos ouvido bastante que são necessárias transformações sociais radicais se realmente quisermos lidar com as consequências da epidemia em curso (eu mesmo me incluo entre aqueles que estão espalhando esse mantra) — mas talvez já estejam ocorrendo mudanças radicais. Esta pandemia do coronavírus nos confronta com algo que considerávamos impossível: ninguém podia imaginar que algo assim realmente ocorreria em nossas vidas cotidianas — o mundo que até então conhecíamos parou de girar, países inteiros estão em situação de lockdown, muitos de nós estamos confinados aos nossos próprios apartamentos (mas e aqueles que não têm sequer condições de se dar ao luxo dessa precaução mínima de segurança?), diante de um futuro incerto no qual mesmo que muitos de nós sobrevivam, uma mega crise econômica nos aguarda… O que isso significa é que nossa reação a isso também deve ser a de fazer o impossível, isto é, o que parece impossível no interior das coordenadas da ordem mundial existente. O impossível aconteceu, nosso mundo parou, e precisamos fazer o impossível para evitar o pior... (…)

Uma crise tripla

Estamos enredados em uma crise tripla. Uma crise médica (a epidemia em si), uma crise econômica (que vai nos acertar em cheio independentemente do desfecho da epidemia) e, por fim, uma crise de saúde mental, que não deve ser subestimada. Afinal, as coordenadas básicas do mundo da vida de milhões e milhões de pessoas estão se desintegrando, e a transformação vai afetar tudo, desde os voos e as férias até os contatos corporais básicos. Precisamos aprender a pensar fora das coordenadas do mercado de ações e do lucro, e simplesmente encontrar outra forma de produzir e alocar os recursos necessários. Por exemplo, se as autoridades descobrirem que uma empresa está sentada em cima de milhões de máscaras, aguardando o momento certo para vendê-las, não deveria haver absolutamente nenhum tipo de negociação com a empresa – as máscaras devem simplesmente ser requisitadas.

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Noticiou-se recentemente que Donald Trump teria oferecido US$ 1 bilhão a uma empresa biofarmacêutica alemã sediada em Tübingen, a CureVac, para reservar a vacina contra o novo coronavírus “exclusivamente para os Estados Unidos”. O ministro da Saúde alemão, Jens Spahn, garantiu que uma aquisição da CureVac pela gestão Trump estava “fora de cogitação”: a CureVac só desenvolveria a vacina “para o mundo todo, não para países individuais”. Aqui temos um caso exemplar da luta entre civilização e barbárie. Mas o mesmo Trump teve que invocar o Defense Production Act que permitiria que o governo garantisse que o setor privado possa acelerar a produção de suprimentos médicos emergenciais.


Sujeito incômodo. Žižek faz críticas ao Brexit e teme perda de direitos conquistados
Foto: Matt Carr/Getty Images / Getty Images
Sujeito incômodo. Žižek faz críticas ao Brexit e teme perda de direitos conquistados Foto: Matt Carr/Getty Images / Getty Images

“Trump anuncia proposta de tomar controle do setor privado. Segundo a Associated Press, o presidente dos EUA afirmou que invocara uma provisão federal permitindo ao governo comandar o setor privado na resposta à pandemia. Trump disse que ele assinaria uma medida dando a si mesmo a autoridade para dirigir a produção industrial doméstica “caso isso seja necessário”.

Quando eu usei a palavra “comunismo” há algumas semanas atrás no contexto da epidemia do coronavírus, fui ridicularizado. Agora, no entanto, “Trump anuncia proposta de tomar controle do setor privado” — alguém poderia imaginar uma manchete dessas mesmo uma semana atrás? E isso é apenas o começo. Muitas outras medidas desse tipo devem se seguir. E mais: será necessário ainda uma auto-organização local das comunidades se o sistema de público saúde estiver demasiadamente sobrecarregado. Não basta apenas isolar-se e sobreviver — para que alguns de nós possam fazer isso, serviços públicos básicos terão que continuar operando: fornecimento de eletricidade, alimentos, medicamentos... (Daqui a pouco precisaremos de uma lista identificando as pessoas que efetivamente se recuperaram e estão, ao menos por enquanto, imunes, para que elas possam ser mobilizados para o trabalho público urgente.) Essa não é uma visão comunista utópica, mas um comunismo imposto pelas necessidade da sobrevivência nua. Trata-se, infelizmente, de uma versão daquilo que em 1918, na União Soviética, denominou-se “comunismo de guerra”.

Como diz o ditado, em uma crise somos todos socialistas. Até mesmo Trump cogita uma forma de Renda Básica Universal: um cheque de US$ 1 mil na mão de cada cidadão adulto. Trilhões serão gastos, violando todas as regras do mercado — mas como, onde e para quem? Será que esse socialismo forçado será um socialismo para os ricos? (Lembremos do resgate dos bancos feito em 2008 enquanto milhões de pessoas comuns perderam suas pequenas economias.) Será que a epidemia vai ser reduzida a outro capítulo da longa e triste história daquilo que Naomi Klein denominou “capitalismo de desastre”, ou será que uma nova ordem mundial (mais modesta, talvez, mas também mais equilibrada) poderá surgir dela?

* Trecho extraído de um livro de intervenção do filósofo Slavoj Žižek sobre a pandemia do coronavírus (Boitempo, no prelo). A tradução é de Artur Renzo .