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Cultura

Socialista de formação, George Orwell criticou tanto o stalinismo quanto o imperialismo britânico

Intelectual indispensável aos dias de hoje, autor inglês nunca deixou de apontar para a corrupção causada pelo poder
John Hurt em cena de '1984', longa de Michael Radford baseado no livro de George Orwell: críticas ao totalitarismo Foto: Divulgação
John Hurt em cena de '1984', longa de Michael Radford baseado no livro de George Orwell: críticas ao totalitarismo Foto: Divulgação

RIO — Em 1928, George Orwell , filho da elite inglesa, hospedou-se em um hotel barato no Quartier Latin de Paris e passou os anos seguintes vivendo entre lavadores de pratos, viciados e mendigos da capital francesa e de Londres. A experiência resultou no livro “Na pior em Paris e Londres” e em ensaios como “Um dia na vida de um vagabundo” e “Como morrem os pobres” . Durante sua juventude, Orwell serviria ainda como membro da polícia imperial britânica na Birmânia, atual Mianmar, e soldado do exército republicano na Guerra Civil Espanhola, ambas experiências que resultariam em livros.

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Famoso por obras alegóricas como “1984” e “A revolução dos bichos”, George Orwell é curiosamente um escritor cuja matéria-prima é quase sempre uma experiência radical da realidade. Romancista político por excelência, cunhou suas crenças ideológicas no contato com a materialidade da pobreza e da opressão na colônia e nas grandes metrópoles europeias.

Editor de jornal de esquerda

Seu romance de estreia, “Dias na Birmânia”, é hoje uma leitura estranha e desconfortável, ao mesmo tempo explicitamente anti-imperialista e vítima dos estereótipos racistas da época. Ainda assim, é um retrato mordaz do cotidiano do império, da violência colonial que se dá nas relações mundanas e diárias.

Orwell não perdoa que, sob o discurso hipócrita de “missão civilizatória”, ingleses mesquinhos, indolentes e bêbados esmaguem a cultura local. Seu protagonista, que não é nenhum herói, apenas um homem atento ao seu redor, chega a articular que o imperialismo seria mais perdoável se assumisse seu verdadeiro intuito, o roubo. É a violência disfarçada de grandes ideais humanitários que Orwell não consegue suportar.

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Esse posicionamento antecipa muito de “A revolução dos bichos”. Tendo lutado do lado antifascista da guerra civil espanhola e trabalhado até o fim da vida como editor do jornal de esquerda “Tribune”, Orwell era um homem de tendências socialistas. Contudo, a ascensão do stalinismo o leva a dissociar a cúpula da União Soviética das propostas concretas de melhoria da vida dos proletários.

Seu sardônico “conto de fadas” fala justamente do afastamento de governantes e realidade, capturado com concisão perfeita no momento em que os porcos dirigentes se erguem de suas quatro patas para caminhar sobre duas. Acontecimento a partir do qual não há mais volta para a revolução.

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Críticas à autocensura

George Orwell: experiências entre viciados e mendigos ou na Guerra Civil Espanhola inspiraram sua obra Foto: Mondadori/Divulgação
George Orwell: experiências entre viciados e mendigos ou na Guerra Civil Espanhola inspiraram sua obra Foto: Mondadori/Divulgação

Para a edição de 1945 do romance, o autor propôs um pequeno ensaio chamado “A liberdade de imprensa” como prefácio, no qual expande sua preocupação com a censura, lembrando que a supressão das opiniões não era uma exclusividade russa, e principalmente questionando a autocensura dos intelectuais e escritores de esquerda da Inglaterra, que ignoravam a violência cometida pelo Exército Vermelho e a opressão dos camponeses da Ucrânia.

Sua rejeição do totalitarismo e preocupação com a farsa em que se tornavam os grandes ideais amadureceram em “1984”, romance em que o posicionamento político do governo é impossível de se dizer. Nada mais próximo a um autoritário de esquerda que um autoritário de direita, parece ser sua posição aqui.

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O distanciamento entre o governo de “1984” e a prole, como o povo é chamado nesse sistema, condensa a análise e a crítica de Orwell nesse romance e em toda sua obra política. O satirista criado na experiência de um hospital público miserável de Paris sustentou por toda sua vida uma desconfiança daqueles que se afastavam do concreto, e nunca deixou de apontar para a corrupção causada pelo poder.

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Seria um erro afirmar que isso o tornasse um pensador político menos comprometido com a esquerda ou com o que ele entendia como os ideais socialistas, Orwell era firme e articulado nesse posicionamento. Pelo contrário, o que ele se recusava era a aceitar que esses ideais se deslocassem a ponto de admitir sua antítese, ou que eles não fossem fortes o suficiente para resistir a críticas vindas de dentro. Nesse sentido, ele era um intelectual raro aos anos 1930 e 1940, mas se torna um intelectual indispensável aos dias de hoje.

* Isadora Sinay é doutoranda em literatura na Universidade de São Paulo, crítica literária e tradutora