Ana está deitada na cama e, pelo celular, ouve a voz do parceiro que conheceu num aplicativo de encontros: 'Tô beijando sua barriga e, aí, vou descendo...'. Ela entra no jogo, vai seguindo as instruções, revira os olhos até irromper num gozo que termina numa gargalhada.
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A rara e corajosa cena de masturbação feminina é uma das mais delicadas de “No ano que vem”, série de Marcia Leite com direção de Maria Flor que estreou este mês no Canal Brasil (domingo, dia 17, tem exibição dos cinco episódios em maratona a partir das 20h) e está disponível no Globoplay.
Quem protagoniza esta passagem disruptiva sobre uma mulher madura dona de seu desejo é uma brilhante Julia Lemmertz. A atriz interpreta a tal Ana, médica de 59 anos que, após um câncer de mama, termina um casamento morno de 30 anos e vai viver sua sexualidade livremente.
E quem segura sua mão neste momento é Bel, chef de cozinha de 20 e tantos anos, que sangra sozinha após um aborto espontâneo enquanto o namorado, dependente químico, cheira pó madrugada adentro.
As duas têm suas vulnerabilidades expostas e selam comovente amizade dentro de um banheiro feminino. O encontro é a força motriz para encararem as barras pesadas.
— A conexão entre elas é mágica. São de mundos e gerações diferentes, mas se reconhecem e se acolhem — destaca Jeniffer, de 32 anos. — Querem viver a partir das escolhas que fazem. Historicamente, estamos acostumadas a abrir mão para olhar o outro. Quando escolhemos nos olhar é muito potente. Elas compartilham o que cada uma tem de melhor para dar.
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A partir da cumplicidade e do afeto, “No ano que vem” joga luz em outras tantas questões caras às mulheres. Sempre sob a perspectiva delas.
— Gosto de trabalhar com o aqui e agora, com o que está acontecendo em volta de mim — diz Marcia Leite. — Queria que esses assuntos entrassem como existem em nossas vidas cotidianas e não parar para fazer um discurso sobre etarismo, racismo, ser ou não gay. Quis mostrar também como as mídias sociais estão tomando conta de tudo.
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E tome aplicativos de relacionamento, sexting, exposed... Pesquisas dando conta de que jovens fazem cada vez menos sexo para mergulharem em relações virtuais serviram de norte para a roteirista.
— Ana sai daquele casamento e se depara com esse mundo contemporâneo interessante, mas maluco. Se envolve com um cara que é um retrato de uma geração viciada em sexo virtual. Os personagens têm o telefone como o meio em que tudo acontece, como tem sido na vida - destaca a roteirista. — Também pesquisamos sobre a quantidade de casamentos que acabam por causa das redes. A superficialidade das relações, a falta de comprometimento com sentimentos.
Marcia mostra, sobretudo, que, aconteça o que acontecer (se não for a morte, claro), a vida continua:
— Você perde um filho, um seio, termina um casamento de 30 anos, mas a vida segue. O poder de renovação dessas mulheres, de não se acomodar... Tem um momento em que a gente tem que viver nossa vida, seja como for.
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Aos 60 anos, Julia, que foi casada por 22, sabe bem disso. Tanto que, mesmo com a agenda cheia, fez questão de dar um jeito para encarnar essa protagonista que tem tudo a ver com ela.
— É uma história muito pertinente que faz sentido para mulheres da minha idade e para a mulher que sou. Ter feito 60 anos e pensar: "E agora? O que fiz até aqui e o que quero fazer mais?". Se redescobrir depois de um casamento longo...
Não que o casamento da série tenha a ver com o seu...
— É mais isso de se ver só depois de um tempão. Chegar numa idade e pensar: "Daqui pra frente, é o fim". Não dá para ficar acomodada porque dali para frente seria o fim. Pode ser outro começo, só termina quando acaba! Vai cortar seu tempo quando ainda está cheia de gás? Não entrei nessa de aplicativo, mas segui sem pudor. Fui catando meus caquinhos e me joguei.
Na cena da masturbação, Julia contou apenas com a presença de Maria Flor. O set foi esvaziado para que se sentisse o mais confortável possível:
— Eu estava de boa, livre. Não pensei em me defender aqui ou ali, fui o mais honesta possível. Nos primeiros encontros de preparação, já estava meio nua, completamente disponível — conta a atriz. — Foi um trabalho intenso, rápido e profundo que fiz puramente na intuição.
Para entender a frequência de uma mulher que aborta, Jeniffer passou uma semana na casa da mãe, que viveu essa experiência. Perguntou, ouviu, aprendeu.
— Foi importante para trazer essa sensação de vazio. Vi minha mãe perder um bebê com três meses. O quanto foi invasivo, o quanto ela sofreu, aquela dor absurda. Mas são histórias diferentes. Minha mãe me teve com 15 anos. Em vários momentos teve que abrir mão das coisas dela para me escolher — lembra Jeniffer.
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Embora coadjuvantes, os homens estão na série. Frágeis. É um marido incapaz de dizer “eu te amo”, como se a frase o rebaixasse diante da companheira. Um namorado que esbanja dependência emocional, cobrando o papel de cuidadora reservado às mulheres no mundo patriarcal. O clássico boy lixo narcisista. Por fim, um amigo hétero que só consegue colocar a sensibilidade para fora ao se apaixonar por outro homem.
— Os homens estão completamente perdidos. Perplexos diante das mulheres que nos tornamos, que escolhemos ser, do lugar que conquistamos. O único na série que consegue enxergar as coisas é um homem negro, que tem toda uma vida de luta, dificuldade, que vem da favela, lugar onde mulheres criam seus filhos sozinhas, e cujo pai sumiu. Mas até ele... é viciado em trabalho — observa Marcia.
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Julia diz que a série é cruel com os homens, mas não tem “pena nenhuma”:
— Ela não alivia a barra deles em momento algum. Claro que há homens e homens, mas sinto muito: tudo ali é típico.
Na realidade, todos os personagens se agarram em alguma coisa na tentativa de seguir adiante. Como diz Márcia:
— É que tá difícil, né? Quem não está angustiado?