Coluna
Daniel Galera O colunista escreve às segundas

Superando a autoficção

Em breve não fará mais muito sentido explorar literariamente a confusão entre autor e personagem para leitores ativos na galáxia de avatares e perfis

A obsessão do leitor e da imprensa com a relação entre obra e vida dos autores parece supor que há uma distinção muito clara entre o que é realidade e imaginação dentro da ficção literária. Nas conversas com autores, isso pode ser averiguado quando chega o momento da pergunta “Mas até que ponto a história é baseada em suas próprias experiências?”.

Não se trata de negar a relação essencial entre a subjetividade e a ficção, presente mesmo na criação literária menos autocentrada que se possa conceber. O que causa estranheza é a tendência de enxergar autobiografia, egocentrismo ou impulsos confessionais irrefreados em todo esforço de converter uma visão de mundo em narrativa literária.

Tem aparecido muito o termo “autoficção”, cuja invenção é creditada ao francês Serge Doubrovsky, que o empregou em 1977 para se referir a seu romance “Fils”. A autoficção seria um tratamento ficcional livre da matéria biográfica, abrindo mão do compromisso total com os fatos para se aproximar da verdade íntima. Um pouco diferente do relato autobiográfico, que presume uma abordagem mais factual.

Em seu provocador manifesto “Reality hunger”, publicado em 2010, David Shields se esforça para bombardear, entre várias outras coisas, a noção de que possa haver literatura ou mesmo pensamento sem alguma espécie de autoescrutínio. Para Shields, não há muita diferença entre ficção e não ficção, autobiografia e invenção, plágio e originalidade. J.M. Coetzee articula a questão no magnífico “Verão”, em que imagina a pesquisa para uma biografia póstuma dele mesmo. Se Coetzee se desse ao trabalho de esclarecer o que é real e ficção nesse livro, destruiria sua magia.

Autoficção e autobiografia são estratégias específicas que não podem ser evocadas sempre que se suspeita de algum vínculo (sempre há) entre a obra e a experiência do autor. É impossível apontar o limite exato que separa autoficção e “pura ficção”. A maioria dos autores seria incapaz de fazê-lo. Os rótulos dependem muito de uma postura assumida pelo próprio autor ou proposta pelos editores, que podem anunciar o texto como autobiográfico, autoficcional etc.

Cristóvão Tezza nos informa de várias maneiras que “O filho eterno” é um relato autobiográfico. Mesmo assim, um leitor desavisado que lesse o original fora de contexto poderia muito bem suspeitar do teor de realidade do que está lendo. “À mão esquerda”, de Fausto Wolff, é uma autoficção memorável que narra, como diz Millôr na orelha, “300 anos de vida do autor”, mesclando a reinvenção da biografia a um vasto painel histórico. Mas onde posicionamos a régua da autoficção em romances recentes como “Pornopopéia”, de Reinaldo Moraes, ou “Habitante irreal”, de Paulo Scott, dois livros de estilo forte nos quais o substrato real se alterna com invenção pura, às vezes quase delirante?

Mais importante que responder a esse tipo de pergunta é perceber que a pergunta não é tão importante. Submeter a ficção a qualquer dicotomia do tipo real/inventado ou vivido/imaginado é transformar algo que na maioria dos casos não passa de uma curiosidade em uma visão totalizante, simplificada e pobre dos prazeres e mistérios que envolvem a escrita e a leitura.

Acho que a atual supervalorização da relação entre vida e obra, que me parece marcar tanto a expectativa do leitor quanto o debate literário em geral, se deve em parte ao fato de que vivemos em uma época individualista e narcisista, na qual a “escrita de si” adquire o significado adicional de dizer algo sobre o estado das relações sociais como um todo, enquanto a opção pela fabulação radical soa anacrônica.

Gosto de pensar que é uma tendência passageira e que a própria escrita acabará favorecendo a superação dessas dicotomias. A conversão de nossas vidas pessoais em narrativas fragmentadas está começando a ficar tão natural e saturada em outros meios, como as redes sociais e a televisão, que em breve não fará mais muito sentido, por exemplo, explorar literariamente a confusão entre autor e personagem para leitores ativos na galáxia de avatares e perfis. Se a literatura for competir com esses outros meios nos termos deles, fracassará.

Não é bem um prognóstico — talvez seja mais um desejo —, mas suspeito que a literatura que vem pela frente será interessante na medida em que fizer contraponto a essa narração constante, fragmentada e “em tempo real” de nosso cotidiano, intimidades e opiniões.

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