Não é novidade que a experiência da escravidão nas Américas deixou sociedades fraturadas , abrigando em seus seios clivagens que, por vezes, parecem intransponíveis. Casos como o de George Floyd — assassinado por agentes do estado nos EUA — em pleno século XXI, e tantos outros no Brasil, são as mais fortes evidências dessa sequela. Talvez seja por isso que a literatura americana continua a nos apresentar obras que se voltam para esse período de horror e sofrimento.
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Desde “A cabana do pai Tomás” (1852), de Harriet Beecher Stowe, a “The Underground Railroad” (2016), de Colson Whitehead, passando por obras canônicas da literatura universal, como “Amada” (1987), de Toni Morrison, temos conhecido versões de um trauma que constitui a identidade americana — e brasileira. Nesse mesmo universo, se insere “A dança da água”, de Ta-Nehisi Coates, que acaba de ser lançado no Brasil pela editora Intrínseca.
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Coates já havia mergulhado nos dilemas raciais de seu país em “Entre o mundo e eu”, livro de não ficção vencedor do National Book Award, além de outras obras ainda não publicadas no Brasil. “A dança da água” é seu romance de estreia e foi bem recebido pela crítica americana, figurando entre os mais vendidos da lista do New York Times, além de ter sido indicado pelo badalado Clube do Livro de Oprah Winfrey.
![Capa de 'A dança da água', deTa-Nehisi Coates Foto: Divulgação](https://ogimg.infoglobo.com.br/in/24673304-38b-a49/FT450A/A-danca-da-agua.-Foto-di.jpg)
A história tem como pano de fundo os anos que antecederam a Guerra de Secessão. Hiram, o narrador, é um escravizado e vive em Lockless, uma grande plantação de fumo em declínio no estado da Virgínia. O mundo de Lockless está dividido entre as classes dos Qualidades, senhores e herdeiros, e dos Tarefeiros, os escravizados. Seu pai é um Qualidade, senhor das terras e de seu corpo: Hiram é filho desse senhor, Howell Walker, com Rose, uma mulher escravizada, e, por isso, um Tarefeiro. Ele foi separado de sua mãe muito cedo, quando ela foi vendida a outra propriedade. Mas o fato de ser filho de um homem branco não faz de Hiram um homem livre. Pelo contrário: sufocado pelas restrições de sua condição, ele empreenderá uma longa jornada por sua liberdade.
Assim como os já citados romances de Whitehead e Morrison, “A dança da água” é atravessado por um híbrido de narrativas realistas e místicas: Hiram tem o dom da Condução, capacidade sobrenatural de se transportar para outros lugares, ativado por fortes emoções, como a que é narrada no capítulo inicial: a experiência do acidente com a carruagem que conduz seu meio-irmão e herdeiro de Lockless. Esse evento mudará sua vida de alguma forma.
O desejo de libertação o levará a ingressar na Clandestinidade, a mítica underground railroad — ferrovia subterrânea, em tradução livre —, uma rede de abolicionistas formada por negros e brancos, além das rotas de fuga utilizadas pelos escravizados para alcançar o norte dos Estados Unidos, o Canadá e o México. É nesse contexto que Hiram conhece Moisés, nome que faz alusão ao personagem bíblico que conduziu escravizados do Egito à Palestina através do Mar Vermelho. Moisés é o codinome de Harriet Tubman (1822 – 1913), a mais famosa abolicionista americana e também personagem do romance de Coates. Além de se engajar no resgate de escravizados, Hiram receberá de Harriet a explicação para a sua experiência de Condução, já que ela própria é portadora desse dom.
A narrativa em primeira pessoa permite ao leitor adentrar a história pelo ponto de vista de Hiram. A partir de seu relato, podemos conhecer esse que foi um dos capítulos mais tristes da história do Ocidente. Ao terminar a leitura, compreendemos que a luta dos que não aceitaram viver subjugados pode ser a esperança de que precisamos para derrotar as sequelas da escravidão.
Itamar Vieira Junior é Escritor e doutor em estudos étnicos e africanos pela UFBA, e autor do romance “Torto arado” (Todavia) Llinks Angela Davis