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Analu Prestes, Stela Freitas e Mario Borges celebram 40 anos de amizade com ‘As crianças’

Texto da inglesa Lucy Kirkwood explora a erosão das relações humanas e tem direção de Rodrigo Portella
Stela Freitas (de pé), Analu Prestes e Mario Borges se equilibram em cima do chão de brita e entre os conflitos de seus personagens Foto: Bárbara Lopes / Agência O Globo
Stela Freitas (de pé), Analu Prestes e Mario Borges se equilibram em cima do chão de brita e entre os conflitos de seus personagens Foto: Bárbara Lopes / Agência O Globo

RIO — Na estrutura quadrada forrada por duas toneladas de brita que serve de palco, Analu Prestes, Mario Borges e Stela Freitas usam galochas para tentar se equilibrar com mais firmeza. Ao comemorar 40 anos de amizade — iniciada pouco antes de atuarem juntos na histórica “Aurora da minha vida”, de Naum Alves de Souza (1942-2016), que ficou em cartaz de 1982 a 1984 —, eles optaram por explorar terrenos movediços. E escolheram montar “As crianças”, escrita em 2016 pela jovem dramaturga inglesa Lucy Kirkwood, que concorreu ao Tony em 2018 e será encenada pela primeira vez no Brasil.

A peça é uma espécie de acerto de contas entre os personagens, sexagenários assim como os atores, que se veem confrontados com a finitude. A levá-los pelas mãos estão o texto de uma autora de 34 anos, longe desta fase da vida, e a direção de outro jovem talento: Rodrigo Portella, 41, que, com “Tom na fazenda”, em 2017, foi indicado a 39 categorias nos principais prêmios de teatro do país — levou, entre outros, dois Shell de melhor direção e melhor ator (Gustavo Vaz).

—Seria fácil montar um clássico, mas buscávamos um texto contemporâneo que falasse de nós, da nossa geração — conta Analu, de 67 anos, que já tinha em mente chamar Portella para dirigi-los. — Uma das razões para isso é que esta peça sempre foi montada muito realisticamente, com cenários como uma cozinha, bem careta. A gente sabia que o Rodrigo ia colocar esse trabalho no lugar que queríamos, com uma estética que é muito própria dele. E não é nada fácil andar nestas pedras. Fora a poeira.

Não por acaso, a estreia, nesta sexta (11), é no Teatro Poeira, em Botafogo.

— Marieta Severo (sócia do teatro) , nossa parceira, irmã camarada, também faz parte desta história. Estava no elenco de “Aurora”.

“As crianças” gira em torno de um casal de físicos aposentados, Dayse (Analu) e Robin (Borges), que vive numa região inóspita assolada por um acidente nuclear ocorrido na usina em que trabalharam no passado. Após uma ausência de 38 anos, Rose (Stela), antiga colega de profissão e amiga, chega à casa com uma missão que poderá mudar para sempre a vida de Dayse e Robin, com quem já tivera um caso.

Cenografia enxuta

Em cena, além dos três e dos fragmentos de rocha trituradas, estão uma mesa, cadeiras, uma poltrona, um cavalinho de madeira, um balão branco e um vasinho de planta. Segundo Portella, a ideia é que fique a cargo da plateia, como se lesse um livro, imaginar o que está sendo contado. Além das falas, os personagens leem as rubricas da peça, descrevendo ações que os espectadores não chegam a ver.

— A gente não tem como mostrar a usina e a destruição. Assim, a cenografia pode evocar percepções mais subjetivas da obra. A brita, por exemplo, está organizada num espaço quadrado que pode sugerir um parquinho, o que remete imediatamente à infância. E, ao mesmo tempo, tem algo austero, estéril, duro e instável. Tem a ver também com este lugar totalmente erodido pela catástrofe, mas também pela erosão interna dos personagens, a instabilidade das relações. E ainda tem esse barulhinho maravilhoso dos passos sobre as pedras e o cheiro do querosene (de lamparinas que ajudam a iluminar a cena) . De alguma maneira, passamos a história por outros sentidos —descreve o diretor.

Ele lembra que seus últimos trabalhos — entre eles “Tom na fazenda”, também com Analu no elenco — seguiram uma mesma “pegada” na questão cenográfica. “Tom na fazenda”, sobre um jovem que viaja ao interior para o funeral do namorado e lá descobre que a família dele nunca tinha ouvido falar de sua existência, tinha um chão de barro. “Nerium Park” , sobre um casal que se muda para um condomínio deserto e cujo nome faz referência a um arbusto tóxico, era constituído apenas de plantas. Já “Antes da chuva” não tinha cenário algum, e o espectador era convidado a imaginar os mais de 20 lugares onde a história se passava.

Cenário enxuto de 'As crianças' inclui brita no chão e poucos móveis Foto: Bárbara Lopes / Agência O Globo
Cenário enxuto de 'As crianças' inclui brita no chão e poucos móveis Foto: Bárbara Lopes / Agência O Globo

E, mesmo não sendo todos projetos pessoais seus, aos olhos de Portella, as montagens têm pontos em comum.

— Parece que elas têm duas esferas que dialogam. De um lado, o universo macro, com uma pegada mais política, social e ambiental, que reflete o que estamos vivendo. E todas partem do universo micro e íntimo de seus personagens para chegar a esse lugar de encontro. Fico pensando se a distopia desses espetáculos surge da minha relação com as obras, ou se elas já vêm com essa carga. Talvez seja um reflexo de um temperamento. Talvez aos 60 anos eu consiga pensar melhor sobre isso (risos) .

Ao rever uma história em comum de quatro décadas, os atores riram e choraram nos ensaios das cenas, que incluem um número musical com “For once in my life”, de Stevie Wonder, escolhida pelo elenco e coreografada por Analu.

Por recomendação da autora, em cada montagem, o encenador escolhe uma música que tenha a ver com o elenco. Na montagem original, londrina, é um hit de James Brown.

— Trouxe várias ideias, a trilha sonora da nossa vida. Na semana passada, depois de ver um documentário sobre Stevie Wonder, falei: ‘Tem que ser ele!’

Ponta de esperança

E quem são, afinal, as crianças do título?

— São os personagens, são os nossos netos, somos todos nós — responde Mario Borges, para quem a história transcende o acidente nuclear, que é apenas um pano de fundo. — Estamos supostamente falando de uma usina na Inglaterra. Mas é uma metáfora. Na verdade, estamos falando de um momento atual no mundo de tsunamis, perigo nuclear, guerras, desequilíbrio ecológico e outros problemas que, se não forem solucionados, trarão graves consequências ao planeta.

— Mas a peça traz uma esperança — avisa Stela, sem dar muitas pistas. — O público vai sair com esta percepção.

“As crianças”

Onde: Teatro Poeira — Rua São João Batista 104, Botafogo, tel. 2537-8053. Quando: de quinta a sábado às 21h. Domingo às 19h. Estreia em 11/1. Até 31/3. Quanto: R$ 60. Classificação: 14 anos.