Foi uma noite de celebração da diversidade e, sobretudo, de contundente afirmação de uma nova geração de artistas. Na última terça-feira (21), a 36ª edição do Prêmio Shell de Teatro — a mais relevante premiação teatral no país, que voltou à cena após um hiato de dois anos provocado pela pandemia — laureou os melhores espetáculos que ocuparam os tablados, entre 2020 e 2022, no Rio de Janeiro e em São Paulo. A valorização da multiplicidade deu o tom da longuíssima cerimônia apresentada por Marisa Orth e Verônica Bonfim, no Teatro Riachuelo, na capital fluminense.
Era o debute de muitos no evento. Coletivos pretos, grupos da Baixada Fluminense e da Baixada Santista e artistas transexuais fizeram barulho — e ecoaram discursos em exaltação a "ancestralidades", palavra que se repetiu aqui e acolá — para comemorar vitórias inéditas. Pela primeira vez em mais de três décadas, uma atriz travesti conquistou um troféu. Protagonista do musical "Brenda Lee e o Palácio das Princesas", que teve temporada elogiada em São Paulo, Verónica Valenttino recebeu o prêmio de Melhor Atriz, num dos momentos mais marcantes da noite.
"Preciso agradecer a toda a minha ancestralidade e a todas as travestis deste país", afirmou a cearense, pedindo que as artistas trans na plateia se levantassem. Concorriam, em diferentes categorias, nomes como Azullllll, pela direção musical de "Cão gelado"; Vitória Jovem Xtravaganza e Vini Ventania Xtravaganza, pela atuação em "Sem palavras"; Assucena, pela atuação em "Mata teu pai — Ópera balada"; e o Coletivo de Artistas Transmasculines, pela pesquisa histórica e ações de visibilidade e inclusão dos artistas transmasculines no Brasil.
"Em 35 anos desta premiação, nenhum corpo como o meu subiu neste palco. Então é uma honra falar aqui. Enquanto vocês fazem arte, nós ainda estamos brigando para viver. Não é mais sobreviver. Nós queremos viver, nós queremos trabalho, nós queremos dignidade, nós queremos sonhar", emocionou-se Verónica Valenttino. "Hoje, as travestis lá do Ceará podem sonhar estar aqui. Elas não precisam ser putas. Não que seja um problema ser puta. Mas não vão prostituir os nossos corpos e a nossa melhor porção, que é a nossa arte. Então, se quisermos viver de arte, podemos, sim", acrescentou.
Único espetáculo a levar dois troféus, "Cárcere ou Porque as mulheres viram búfalos" — que realizou temporada elogiada em São Paulo — foi laureado nas categorias Dramaturgia e Música. A peça acompanha a vida de irmãs gêmeas com as vidas marcadas pelo encarceramento de familiares. "São personagens que não aprenderam a ler, mas escreveram a própria história com o corpo e a altivez. Salve as nossas ancestralidades", reforçou a dramaturga Dione Carlos, responsável pelo texto encenado pela Companhia de Teatro Heliópolis, com sede na favela homônima na Zona Oeste da capital paulista.
Entre os premiados do Rio de Janeiro, destacaram-se nomes como Vera Holtz (melhor atriz, pelo trabalho em "Fricções"), Márcio Abreu e Nadja Naira (na categoria Direção, por "Sem palavras") e Cridemar Aquino (melhor ator, por "Joãosinho e Laíla: ratos e urubus, larguem minha fantasia"), além da diretor Renata Tavares (por "Nem todo filho vinga").
Homenagens
A cerimônia contou com uma homenagem especial às atrizes Teuda Bara e Léa Garcia. Ao lado do pianista Gilson Peranzzetta, a cantora Alaíde Costa interpretou "Manhã de carnaval", canção no repertório do espetáculo "Orfeu da Conceição", estrelado por Léa Garcia em 1956, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro — e que inspirou o filme "Orfeu Negro" (1959), vencedor da Palma de Ouro em Cannes.
Aos 90 anos, Léa Garcia agradeceu o "reconhecimento", como disse. E também celebrou a conquista recente das leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo, voltadas para o apoio e a promoção da Cultura. "Esse prêmio é para todas nós, atrizes de todas as cores e matizes de nosso país", festejou.
Teuda Bara conta que chorou ao assistir à apresentação que o Grupo Galpão preparou especialmente para a ocasião. Integrantes da cultuada companhia mineira — que atriz de 82 anos fundou, ao lado de outros colegas, em 1982 — encenaram um número musical nos tablados.
"Quero ressaltar a importância de haver um grupo de teatro por tanto tempo. Durante a pandemia, tivemos a sorte de estar todos juntos, fazendo teatro pelo celular, coisa que eu não entendia nada (risos). Isso nos salvou", afirmou. "O teatro salva. Ali, você esquece de tudo. Está com negócio de ficar deprimido? Larga isso para lá e vá fazer teatro!", brincou a artista.
Rio de Janeiro
A seguir, confira a lista de indicados ao Prêmio Shell de Teatro no Rio de Janeiro, com vencedores destacados em negrito.
Dramaturgia
- Henrique Fontes e Vinicius Arneiro, por “Peça de amar”;
- Gilson Barros, por “Riobaldo”;
- Cecilia Ripoll, por “Pança”;
- Elisandro de Aquino por “Eu amarelo”;
- Rodrigo Portella, por “Ficções”;
- Marcio Abreu e Nadja Naira, por “Sem palavras”
Direção
- Renata Tavares, por “Nem todo filho vinga”;
- Enrique Diaz e Marcio Abreu, por “O espectador”;
- Rodrigo Portella, por “Ficções”;
- Paulo de Moraes, por “Neva”;
- Marcio Abreu, por “Sem palavras”;
- André Paes Leme, por “A hora da estrela ou O canto da Macabéa”
Ator
- Reinaldo Junior, por “O grande dia”;
- Milton Filho, por “Joãosinho e Laíla: ratos e urubus, larguem minha fantasia”;
- Cridemar Aquino, por “Joãosinho e Laíla: ratos e urubus, larguem minha fantasia”;
- Gilson Barros, por “Riobaldo”;
- Fábio Osório Monteiro, por “Sem palavras”;
- Mario Borges, por “A última ata”
Atriz
- Ana Carbatti, por “Ninguém sabe meu nome”;
- Vera Holtz, por “Ficções”;
- Vilma Melo, por “Mãe de santo”;
- Andrea Beltrão, por “O espectador”;
- Vitória Jovem Xtravaganza, por “Sem palavras”;
- Vini Ventania Xtravaganza, por “Sem palavras”
Cenário
- J.C. Serroni por “Morte e vida severina”;
- André Curti e Artur Luanda Ribeiro, por “Enquanto você voava, eu criava raízes”;
- João Marcelino, por “Candeia”;
- Bia Junqueira, por “Ficções”;
- Cachalote Mattos, por “Turmalina 18 - 50”;
- Erick Saboia e Marcio Meireles, por “Do outro lado do mar”
Figurino
- Wanderley Gomes, por “Vozes negras: a força do canto feminino”;
- João Pimenta, por “Ficções”;
- Ticiana Passos, por “Enquanto você voava, eu criava raízes”;
- Julia Vicente e Gabriel Vieira, por “Peça de amar”;
- Marie Salles, por “O espectador”
Iluminação
- Cesar de Ramires, por “Morte e vida severina”;
- Artur Luanda Ribeiro, por “Enquanto você voava, eu criava raízes”;
- Gabriel Fontes Paiva e André Prado, por “Um precipício no mar”;
- Alexandre Gomes, por “A jornada do herói”;
- Maneco Quinderé, por “Neva”;
- Fernanda Mantovani, por “Caim”
Música
- Jorge Maya, pela direção musical de “Luiza Mahin ... Eu ainda continuo aqui”;
- Itamar Assiere, pela direção musical de “Morte e vida severina”;
- Chico Cézar, pela direção musical de “A hora da estrela ou O canto da Macabéa”;
- Ananda K, pela direção musical de “Candeia”;
- Claudia Eliseu e Wladimir Pinheiro, pela direção musical de “Vozes negras: a força do canto feminino”;
- Azullllll, pela direção musical de “Cão gelado”
Energia que vem da gente (Inspiração)
- “Companhia Cria do Beco”, baseada no Complexo da Maré, pelo espetáculo Nem Todo Filho Vinga, que traduz para a contemporaneidade de modo complexo e eletrizante o conto Pai contra Mãe, de Machado de Assis, possivelmente o maior libelo antirracista da história da literatura brasileira;
- “Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR)”, pela campanha de arrecadação realizada durante a pandemia, que ajudou inúmeros profissionais do teatro a sobreviverem materialmente, e também por ter sido fundamental na luta para a aprovação no Congresso Nacional das leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc;
- “Cia de Mystérios e Novidades”, por fomentar há 40 anos um teatro marcado pela diversidade e multiplicidade e, mais recentemente, por ter criado sua Escola Sem Paredes, um complexo de espetáculos, performances, cortejos, intervenções urbanas, exposições, aulas, seminários, oficinas e atividades socioculturais fundamentais para a ocupação do território da zona portuária do Rio de Janeiro e para o enriquecimento do calendário cultural da cidade.
- “Pandêmica Coletivo”, por seu pioneirismo em criar uma plataforma online durante a pandemia, possibilitando a colaboração continuada entre artistas de diversas partes do Brasil, a experimentação de novos recursos na produção teatral online e difusão desses novos trabalhos.
- “Revista Questão de Crítica”, por ter contribuído para o fortalecimento das ações online criadas durante a pandemia, estimulando o debate sobre novas possibilidades estéticas abertas por esse novo modo de produção teatral, e também por ter sido, ao longo de 15 anos de existência, decisiva para o fomento do pensamento crítico nas artes cênicas brasileiras.
- “Projeto Que boca na cena?”, por ter realizado transmissões virtuais de espetáculos para fomentar a distribuição de renda para profissionais da cultura durante a pandemia e, nesse processo, por ter se firmado como importante espaço de uma prática antirracista continuada, que amplifica o alcance de trabalhos de artistas negros e periféricos.
São Paulo
A seguir, confira a lista de indicados ao Prêmio Shell de Teatro em São Paulo, com vencedores destacados em negrito.
Dramaturgia
- Dione Carlos, por “Cárcere ou Porque as mulheres viram búfalos”;
- Soraia Costa, por “Sete cortes até você”;
- Ronaldo Serruya, por “A Doença do outro”;
- Viviane Dias, por “Tarsila ou A vacina antropofágica”;
- Lucas Moura, por “Desfazenda – Me enterrem fora desse lugar”;
- Paola Prestes, por “Bata antes de entrar”
Direção
- Miguel Rocha, por “Cárcere ou Porque as mulheres viram búfalos”;
- Lázaro Ramos e Tatiana Tibúrcio, por “O método Grönholm”;
- Ruy Cortez e Marina Nogaeva Tenório, por “A semente da romã” e “As três irmãs”;
- José Fernando Peixoto de Azevedo, por “Um inimigo do povo”;
- Janaina Leite, por “A história do olho – Um conto de fadas pornô-noir”;
- Rogério Tarifa, por “O que nos mantém vivos?”
Ator
- Clayton Nascimento, por “Macacos”;
- Paulo Marcello, por “O fazedor de teatro”;
- Rodrigo Pandolfo, por “F.E.T.O (Estudos de Doroteia Nua Descendo a Escada)”;
- Luis Lobianco, por “O método Grönholm”;
- Odilon Wagner, por “A última sessão de Freud”;
- Zécarlos Machado, por “Papa Highirte”
Atriz
- Verónica Valenttino, por “Brenda Lee e o Palácio das Princesas”;
- Assucena, por “Mata teu oai – Ópera balada”;
- Ana Lucia Torre, por “Longa jornada noite adentro”;
- Sara Antunes, por “Anjo de pedra”;
- Clara Carvalho, por “Um inimigo do povo”;
- Laila Garin, por “A hora da estrela ou O canto da Macabéa”;
Cenário
- Fabio Namatame, por “A última sessão de Freud”;
- Daniela Thomas e Felipe Tassara, por “Molly Bloom”;
- Bira Nogueira, por “Meu reino por um cavalo”;
- Luiz André Charubine e Mandy, por “Pérsia”;
- Zé Henrique de Paula, por “Sweeney Todd”;
- Chris Aizner, por “Outono, inverno ou O que sonhamos ontem”
Figurino
- Claudia Schapira, por “Na solidão dos campos de algodão”;
- Marichilene Artisevskis, por “Mary Stuart”;
- Karen Brusttolin, por “Gaslight, uma relação tóxica”;
- Anne Cerutti, por “Consentimento”;
- João Pimenta, por “F.E.T.O (Estudos de Doroteia Nua Descendo a Escada)”;
- Silvana Marcondes, por “Nzinga”
Iluminação
- Wagner Pinto, por “F.E.T.O (Estudos de Doroteia Nua Descendo a Escada)”;
- Cesar Pivetti, por “Brilho eterno”;
- Aline Santini, por “Na solidão dos campos de algodão”;
- Cibele Forjaz, por “Altamira 2042”;
- Wagner Antonio, por “Com os bolsos cheios de pão”;
- Wagner Freire, por “Mary Stuart”
Música
- Marco França, pela direção musical de “Tatuagem”;
- Tom Zé e Maria Beraldo, pela música de “Língua brasileira”;
- Alisson Amador, Amanda Abá, Denise Oliveira e Jennifer Cardoso, pela execução musical em “Cárcere ou Porque as mulheres viram búfalos”;
- Dani Nega, Eugênio Lima e Roberta Estrela D’Alva, pela direção musical de “Hip hop blues”;
- Felipe Botelho, Amanda Ferraresi, NBKE e Wallie Ruy, pela execução musical em “Wonder – Vem pra barra pesada”;
- Dan Maia, pela música de “Tebas”
Energia que vem da gente (Inspiração)
- “Éssa Companhia de Teatro”, pelo trabalho com a comunidade de São Miguel Paulista, no extremo da Zona Leste de São Paulo, que resultou no espetáculo Ensaio para dois perdidos;
- “Coletivo 302”, pela valorização da ancestralidade em Cubatão, na baixada santista, refletindo sobre a herança socioambiental da época em que era a cidade mais poluída do mundo, expressa de maneira contundente no espetáculo Vila Parisi;
- “Rede de Leituras”, pela importante reunião de profissionais do teatro para fomentar e difundir a dramaturgia contemporânea em tempos pandêmicos;
- “Cia Munguzá de Teatro”, por suas ações artísticas e sociais acolhendo a população da Cracolândia e seu entorno durante a pandemia de Covid-19;
- “CATS (Coletivo de Artistas Transmasculines)”, pela pesquisa histórica e ações de visibilidade e inclusão dos artistas transmasculines no Brasil;
- Os Satyros”, pelo projeto A arte de enfrentar o medo / The art of facing the fear, reunindo simultaneamente artistas de vários países dos cinco continentes e fomentando a experimentação de formatos digitais durante a pandemia.