Ione de Medeiros assume que tinha certa resistência em montar peças de Nelson Rodrigues.
— Sou mineira e não me identificava com a alma carioca da dramaturgia do Nelson — observa Ione, evocando a Juiz de Fora natal, em relação ao autor que, apesar de ter elevado o Rio de Janeiro ao status de personagem fundamental de suas obras, nasceu no Recife.
O estranhamento, porém, foi rompido a partir do momento em que ela levou ao palco “Boca de Ouro”, título referente ao poderoso bicheiro, ao Drácula de Madureira, um dos célebres personagens do dramaturgo.
— Coloquei Boca como um gângster universal, mas sem me afastar das características da obra de Nelson. O fato é que me apaixonei pelo teatro dele, atravessado por emoções exacerbadas — afirma Ione, diretora à frente, há 40 anos, do Grupo Oficcina Multimédia, fundado em 1977.
Convencida por Jonnatha Horta Fortes, ator do grupo há 22 anos, Ione mergulhou numa encenação de outra peça de Nelson: “Vestido de noiva”. O resultado chega nesta quarta-feira (11) ao Teatro II do Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio.
—Vejo ligação entre as duas peças. Se em “Boca de Ouro” uma personagem (Guigui) apresenta pontos de vista diferentes para uma mesma história, suscitando dúvidas sobre a veracidade dos acontecimentos, em “Vestido de noiva” a história é constantemente questionada pelos personagens até porque não cabe confiar tanto na nossa memória — compara Jonnatha.
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Nesta nova montagem, o texto, dividido em três planos (realidade, memória e alucinação), foi preservado na sua quase totalidade. Guiado por um narrador (uma presença em vídeo), o público acompanha a conhecida, mas ainda desafiante, via-crúcis de Alaíde. Vítima de um atropelamento, ela é operada e, inconsciente, tenta reconstruir a própria história — em especial no que diz respeito ao imbróglio com o marido, Pedro, e a irmã, Lúcia — com a ajuda de uma morta, Madame Clessi.
— Nelson se revelou precursor ao mostrar a mulher que busca a liberdade. Alaíde reescreve o seu percurso a partir do inconsciente, justamente do terreno em que não existe censura — frisa Ione.
A diretora defende a ideia de que cada indivíduo não se reduz a um bloco único, mas, ao contrário, carrega, dentro de si, uma multiplicidade. Não por acaso, alguns personagens aparecem duplicados ou triplicados e o elenco se reveza entre eles, sem distinção de gênero.
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Além disso, a montagem de “Vestido de noiva” concilia uma valorização crescente da palavra com a continuidade da importância destinada à imagem nos trabalhos do grupo. O impacto visual se traduz numa cena que propõe uma mistura de linguagens artísticas. O aparato multimídia ganhou espaço uma vez que o espetáculo foi gestado, em boa medida, à distância, durante a pandemia. Mas não apenas por isso.
— Adoro cinema. Sou de uma geração que assistiu ao surgimento da nouvelle vague — declara Ione acerca do movimento cinematográfico que, no final da década de 1950, deu vazão a filmes desvinculados da engrenagem industrial, assinados por jovens e inquietos diretores.
Projeções à parte, a cena não foi concebida para deslumbrar as retinas dos espectadores. Os elementos cenográficos têm funções utilitárias.
— Priorizo elementos do cotidiano, como mesa e cadeiras, que adquirem diversas possibilidades, transcendendo, portanto, os seus significados literais. Todos têm rodinhas e se movem para dar a sensação de flutuação do inconsciente — explica Ione.
Um marco
Como se pode perceber, Ione não investiu numa montagem tradicional. Nem faria sentido. Vale lembrar que “Vestido de noiva” despontou como uma peça bastante singular na época de sua primeira encenação, que estreou em 28 de dezembro de 1943, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, sob a direção do polonês Ziembinski, com o grupo amador Os Comediantes.
Professora e crítica de teatro, Tania Brandão relativiza o alcance da montagem original, mas sem minimizar a qualidade da peça de Nelson.
— A encenação de 1943 foi um marco criado posteriormente pelos historiadores. Teve repercussão localizada no meio intelectual, que viu no texto a densidade que ele realmente tem. Considero “Vestido de noiva” a melhor peça do Nelson, que fez um raio X do estado de alucinação da sociedade brasileira — analisa Tania.