No papel, a sinopse de “O solo da cana” seria algo como: com humor e provocação, um pé de cana-de-açúcar faz um alerta sobre as questões ambientais que afligem o planeta e a todos que aqui habitam, passando em revista o passado e o presente de sua espécie. Em cena, no entanto, o trabalho de estreia da bailarina Izabel Stewart como atriz e dramaturga, sob direção do coreógrafo João Saldanha, soa como um alerta sobre os perigos da sociedade de consumo e seus descartes.
Izabel surpreende e envolve o público assumindo o inesperado “lugar de fala” de uma cana-de-açúcar, tão sacana quanto politizada. Seu jogo de corpo, as nuances de voz e a proximidade da audiência criam um ambiente de cumplicidade para as reflexões do vegetal, que se autodenomina, com ironia, commodity. “Solo da cana” é fruto da militância da artista na agroecologia, tanto que antes de chegar ao Espaço Abu, em Copacabana, onde fica em cartaz até o fim do mês, teve pré-estreia no Plante Rio, evento sobre ecologia e sustentabilidade na Fundição Progresso, na Lapa, região central do Rio.
— É um grito, um alerta e também um chamado. Uma tentativa de criar cumplicidade interespécies. Não pretendo ser a imitação da cana, nem vegetalização do humano e muito menos a humanização do vegetal, mas a possibilidade de ir além de si no encontro com o outro — diz a artista.
O texto de “O solo da cana” é uma mistura de experiências vividas por Izabel na última década, quando intensificou sua militância ambiental mas não deixou de lado o trabalho artístico. Bailarina da companhia de João Saldanha, no Rio, no final dos anos 1990, ela foi morar em Belo Horizonte, no início da década de 2000, onde trabalhou com a coreógrafa Dudude Herrmann e criou solos performáticos. Também fundou a ONG Primo — Primatas da Montanha, em Nova Lima, nas cercanias da capital mineira.
Com uma primeira versão do texto pronta, a dramaturga estreante rumou para Maricá, cidade fluminense onde João Saldanha vive numa casa cercada de muito verde:
— Me ofereci pra ele me dirigir e ele aceitou!
Saldanha conta que não titubeou:
— Eu fiquei impressionado com a velocidade do pensamento, de como o texto transita entre o humor e a indignação. Começamos o trabalho lendo o texto de diversas formas, tristes, raivosos, preguiçosos, amorosos, até chegarmos às variações que acontecem em cena. Trata-se de uma cana sacana, sedutora, irônica, ainda que amigável.
O processo de criação iniciado em maio teve como ponto alto uma viagem à Fazenda São Luiz, uma experiência agroflorestal no interior de São Paulo, cercada por fazendas de monocultura, inclusive de cana-de-açúcar. Durante a estada, Izabel foi para o meio das plantações para viver sua cana. Para ela, está mais do que na hora de o mundo se mobilizar por mudanças ambientais:
— Talvez o aquecimento global tocando a pele possa ter um efeito mobilizador por mudanças— finaliza.
Onde: Espaço Abu. Av. Nossa Senhora de Copacabana 249, loja E (2137-4183). Quando: Sex a dom, às 20h. Até 29 de outubro. Quanto: R$ 60. Classificação: 10 anos