Desde que se assumiu publicamente como um homem gay, no ano passado, Marco Pigossi ganhou uma certeza: levaria para o campo profissional a causa LGBTQIAP+. Depois de anos se escondendo, sustentando a persona hétero que lhe serviu de couraça por quase duas décadas, sentia responsabilidade moral e social de “compensar o atraso” e trabalhar pela comunidade. Se na vida pessoal e artística nunca teve referência em quem se espelhar, à medida que se sentia forte para falar sobre sua sexualidade, o ator passou a querer ser essa pessoa. Inspirar novas gerações. E, para ele, não existe melhor caminho para atingir o objetivo do que pela arte, “que tem o poder de tocar, humanizar e fazer refletir”.
“Corpolítica”, documentário que produziu sobre candidaturas LGBTQIAP+ nas eleições municipais do Rio em 2020, é resultado desse processo. Dirigido e roteirizado por Pedro Henrique França, o longa foi selecionado para Queer Lisboa — Festival Internacional de Cinema Queer, em setembro. Pigossi também tem projeto de transformar em filme o pioneirismo do Brasil na distribuição de remédios e antivirais contra a Aids. Morando em Los Angeles desde 2018, deseja contar histórias positivas sobre seu país.
Parcerias com o namorado
Antes, em setembro, roda “Best place in the world”, sobre um jovem brasileiro que deixa a família evangélica rumo a Provincetown, famoso reduto LGBTQIA+ em Cape Cod, EUA. Ali, sente-se livre para viver plenamente sua sexualidade — daí o título do filme, inspirado na música de Gilberto Gil. O projeto, cuja premissa não é mera coincidência, marca a segunda parceria de Pigossi com o namorado, o cineasta italiano Marco Calvani, diretor do longa.
— O personagem era latino, mas virou brasileiro quando entrei no projeto. O Marco acompanhou meu processo de sair do armário e transformar isso numa questão política para abrir caminhos para jovens —conta Pigossi, de 33 anos, por telefone de Toronto, onde roda o spin-off da série “The boys”. — Tenho necessidade de me expressar sobre o meu processo, sobre o que causou em mim, sobre o que pode causar nas pessoas. É uma maneira de eu me curar.
Foi o que Calvani fez no curta “A better half”, produzido por Pigossi e exibido mês passado no Provincetown International Film Festival. Centrado no reencontro de um homem de meia-idade com o responsável por tornar sua vida conturbada, o filme é inspirado no abuso que o próprio Calvani sofreu na infância e o ajudou a trabalhar o trauma. Como se vê, a relação dos dois é regada a cumplicidade. No início do ano, o ator trouxe o namorado ao Brasil. Calvani “ficou fascinado” com Belém, “porta de entrada para a Amazônia”, onde Pigossi rodava a segunda temporada da série “Cidade invisível”.
— Ele ficou existindo no meu ambiente de trabalho com uma naturalidade que me fez tão bem... A vida inteira meu trabalho e minha vida pessoal eram separados, tinha medo de que descobrissem... Pela primeira vez, esses mundos existiram juntos, e foi emocionante — lembra.
O ator também apresentou Calvani à família:
— Com meu pai, é sempre tenso, não há naturalidade. É distante do universo dele, que é eleitor do Bolsonaro. Não que ele ache que ser gay é falta de porrada, mas se vota num candidato desse... Existe um ideal político que distancia a gente. Ele nunca vai me pegar pelo braço e se unir nessa causa. Diferentemente do amor incondicional da minha mãe - compara. - Mas eles se deram superbem. Meu pai até arriscou um italiano, porque meu avô era italiano.
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Em casa, o Pigossi adolescente jamais teve abertura para conversar sobre o assunto. Quando se descobriu gay, foi tomado pela solidão:
— Eu rezava, pedia a Deus para me consertar. A homofobia é tão enraizada que, por mais que a gente assuma, ainda vai lidar com o preconceito interno. Vesti a máscara heterossexual, sempre fui observado pela beleza. Fiz esse personagem hétero para me esconder, o que deixou minha vida mais confortável. E sou branco, privilegiado, classe média, filho de médicos. Imagina quem está na favela, é negro...
Na escola, também se escondia. Não descia no recreio, dispensou até a viagem de formatura. A salvação veio pelo teatro, onde podia viver outras realidades:
— Conheci corpos gays ali. Era um alívio deixar de ser eu. O que era uma fuga, mas carregada de carga cultural, do despertar como pessoa.
Fazer as pazes consigo é algo que Pigossi recomenda:
— A pessoa que se aceita e está feliz com o que é conhece uma força enorme. Se sente com poder para ocupar espaços. E o encontro com a comunidade é uma corrente bonita, a gente se sente fortalecido, cria um senso comunitário. Porque, no fundo, o que a gente mais quer é pertencer. Como homossexual, sentia que não pertencia a nenhum grupo. Todos esses corpos passam por isso. E quando passam a pertencer... É do caralho!
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Assim como se libertar do fingimento. Pigossi, por exemplo, exagerava no aperto de mão viril, preocupação da qual se livrou:
— Me desenvolvi tentando manter um corpo masculinizado. E acho que isso veio do trauma de não poder me assumir, foi uma maneira de me proteger. Mas, hoje, aquela sombra de “não desliza” desapareceu.
![Morando em Los Angeles, ator também faz série de super-heróis enquanto deseja contar histórias positivas sobre o Brasil, como o pioneirismo no combate à Aids: “Fiquei anos numa caixinha, não quero mais ficar em nenhuma” — Foto: Gerson Lopes/ Divulgação](https://s2-oglobo.glbimg.com/TyCnHJuFL2SmVixQlYGVOmqlI60=/0x0:5464x8192/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_da025474c0c44edd99332dddb09cabe8/internal_photos/bs/2022/l/E/0baxjATtK6JZYZ615egA/99760874-exclusiva-sc-leg-marco-pigossi.jpg)
Marco Pigossi diz que há um paralelo entre as motivações que o levaram a revelar publicamente sua sexualidade e as reflexões levantadas pelo documentário “Corpolítica”, de Pedro Henrique França. O longa, que terá distribuição pela Vitrine Filmes, nasceu da surpresa diante do recorde de candidaturas LGBTQIA+ no Rio de 2020, dentro do país em que a violência contra essa população bate recordes mundiais.
— Era a eleição seguinte à de Bolsonaro, período tenso para os LGBTQIAP+ por causa da legitimação do discurso de ódio, da campanha difamatória — analisa. — Queríamos entender se o recorde de candidaturas era uma resposta a esse movimento. Porque em mim foi. O Bolsonaro e a corrente de fake news causaram em mim uma reação a essa opressão, um momento de ruptura, uma tentativa de liberdade de existir.
No decorrer do longa, que acompanha quatro candidatos (Erika Hilton, Andréa Bak e Monica Benicio, do PSOL, e William de Lucca, do PT), a equipe entendeu que estava também diante de importantes questionamentos sobre o vazio da representatividade queer na política brasileira. Por que essa parcela da população não se vê nessa posição e por que aqueles candidatos despertaram para a política? Para investigar o assunto, entrou na casa dos que concorriam a um cargo público a fim de conhecer suas trajetórias. Nesse contexto, colheram histórias de massacres emocionais, abandono, bullying e falta de autoestima. “Deus não aceitaria, por que eu ia aceitar?”, questiona a mãe de Andréa Bak sobre a filha lésbica, num momento do filme. “Meu irmão me disse: ‘Eu preferia que você estivesse morta’”, conta Monica Benicio em outra passagem.
— São falas que a gente ouve a vida inteira. Me marcou quando a Monica conta que a mãe tinha medo de ela se machucar. É um medo que vem do amor, mas causa na gente a sensação de que não temos aptidão para estar nesse lugar, para nos machucar. Isso aconteceu comigo — afirma Pigossi.
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Mas nem todo trabalho com que o ator e produtor está envolvido é político. A série “The Boys presents: Varsity”, spin-off do seriado de sucesso, por exemplo, é pura diversão. Na trama, que envolve uma universidade para jovens que desenvolvem superpoderes, ele interpreta o médico cientista Doutor Cardosa. O ator foi aprovado para o papel graças a um teste feito remotamente, mas ao vivo, do hotel de Belém onde estava hospedado.
— Quando se fala de super-heróis, a gente pensa em diversão, mas são horas gravando coisas muito técnicas. É uma série particular, tem um humor específico, muito sangue, sequências de luta com muito efeitos, vários poderes, órgãos sexuais... — conta. — Tem espaço para tudo (na carreira do ator), sabe? Fiquei anos numa caixinha, não quero mais ficar dentro de nenhuma.