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Por Ruan de Sousa Gabriel — São Paulo

Filipa Moletta tem 12 anos e não perde um capítulo de “Vai na fé”, a novela das sete da TV Globo, assinada por Rosane Svartman. Filipa sabe de cor as músicas de Lui Lorenzo, o cantor brega e “boy lixo” em recuperação interpretado por José Loreto, e já aprendeu a coreografia de um de seus hits, “Se eu fosse casado”, que viralizou no TikTok. Criadora do “Projeto Redomas”, podcast que discute o cristianismo da perspectiva da mulher, Luciana Petersen se reconhece em Jenifer (Bella Campos), que, como ela, é negra, feminista, evangélica e a primeira da família a ingressar na Universidade, onde começou a discutir racismo e direitos humanos, tentando conciliar o engajamento político com sua fé.

Já o escritor Vitor Martins voltou a ver novela “religiosamente”, em vez de só espiar a das nove enquanto esperava começar o “Big Brother Brasil”. Autor de livros para jovens com protagonistas LGBT (“Quinze dias”, “Se a casa 8 falasse”), ele diz que o folhetim tem “um quê de ‘Malhação’”. Se antes voltava do colégio e acompanhava os dilemas dos alunos do Múltipla Escolha, agora ele chega do trabalho e liga na novela para conferir o que rola no ICAES, a faculdade de Direito fictícia onde estudam alguns personagens.

“Vai na fé” gira em torno de Sol (Sheron Menezzes), ex-princesa do baile funk, evangélica, suburbana, que vendia marmita e tem a chance de voltar a dançar. E caiu no gosto do público. Em março, registrou média de 23 pontos de audiência. No dia 28, a média foi de 25,8 pontos, maior audiência de uma novela das sete desde o capítulo final de “Salve-se quem puder”, em julho de 2021. Em São Paulo, a audiência média está em 23 pontos. No Rio, chega a 25. As praças que mais vão na fé são Recife e Salvador: média de 30 pontos. A novela também bate recorde de “merchan”, a propaganda incluída no enredo. Segundo a TV Globo, “Vai na fé” é o maior sucesso comercial da faixa das sete desde 2016.

Carisma e bom humor

A novela também dá o que falar na internet. Em março, ficou 118 horas entre os assuntos mais comentados no Twitter brasileiro (e 11 horas entre os temas mais falados do mundo). Os personagens mais citados foram Sol e Lui, que engataram um romance secreto, Jenifer e Lumiar (Carolina Dieckman), professora de Direito do ICAES.

Aliás, é a faculdade fictícia que dá o “quê de Malhação” à novela. Lá, os alunos discutem de tudo: de temas cabeçudos do Direito (revisão criminal, justiça restaurativa) a questões sociais caras à Geração Z (racismo, masculinidade tóxica, assédio sexual). Os debates são sérios, mas não falta bom humor. Nem coadjuvantes carismáticos. Nem uma trilha sonora que se equilibra entre a nostalgia gospel, o romantismo do funk melody e a sensualidade dos hits contemporâneos.

A autora Rosane Svartman afirma que o segredo do sucesso é a “escuta”, a sensibilidade para identificar que histórias o público quer ver.

— Uma novela é sempre um imenso diálogo nacional.

'Graça e paz'

A família da protagonista Sol, que é evangélica — Foto: Divulgação
A família da protagonista Sol, que é evangélica — Foto: Divulgação

Criado em lar evangélico, Vitor Martins se interessou por “Vai na fé” antes da estreia, em janeiro, ao saber que, pela primeira vez, uma novela da TV Globo teria uma protagonista “crente”. A novidade também chamou a atenção de Luciana Petersen, filha de pastor. Ela sempre lamentou que a representação dos protestantes na mídia em geral se apoiasse em estereótipos ou na repercussão de notícias negativas envolvendo líderes religiosos.

Mas se surpreendeu ao ver que a igreja frequentada pela família de Sol se parece muito com a sua. Ela reconhece várias dos louvores que embalam os cultos da Comunidade Evangélica de Piedade e chorou quando o coral cantou “Vem me socorrer”, da banca gospel Palavrantiga, no velório de Carlão (Che Moais), marido de Sol. Assim como Martins, Luciana elogia a novela por mostrar como as igrejas evangélicas acolhem os fiéis, mas sem “passar pano” para o moralismo dos irmãos que julgam Sol por dançar as coreografias sensuais de Lui Lorenzo.

Rosane Svartman começou a pensar em uma protagonista crente anos atrás, ao verificar que boa parte dos espectadores de “Bom sucesso”, sua novela anterior, era de evangélicos. Também se deu conta de que é altamente provável que uma mulher negra e periférica como Sol frequente a igreja. Para retratar uma família evangélica com verossimilhança e respeito, mergulhou na pesquisa. Conversou com um punhado de gente — como a cantora Negra Li, que, como Sol, é evangélica, periférica e sobe no palco — e visitou várias igrejas. Criou a Comunidade Evangélica de Piedade inspirada nas chamadas igrejas protestantes históricas, trazidas para o Brasil, ainda no século XIX, por missionários estrangeiros, como a Presbiteriana, a Batista e Metodista. Por isso a liturgia dos cultos em Piedade não é tão agitada como a de igrejas pentecostais e neopentecostais, que aparecem mais na mídia.

Para escrever as cenas do núcleo evangélico, os roteiristas da novela contam com a ajuda do pastor César Belieny, da igreja Vineyard, na Barra da Tijuca. A novela inclui expressões típicas do “crentês", como “graça e paz”, repetida como cumprimento, e “vigia”, alerta que significa “cuidado com a tentação”. Até xingamento gospel já apareceu em “Vai na fé". Jenifer chama a fofoqueira da igreja, Dona Neide (Neyde Braga), de “pereba de Naamã”, referência a um leproso do Antigo Testamento que relutou em dar ouvidos ao profeta Eliseu.

— A novela representa muito os evangélicos ao captar essas nuances do cotidiano, como é a vida na igreja, como nós falamos, a música — diz Luciana.

Dando aula

Bela (Clara Serrão), Jenifer (Bella Campos) e Yuri (Jean Paulo Campos), alunos do ICAES, em "Vai na fé" — Foto: Divulgação
Bela (Clara Serrão), Jenifer (Bella Campos) e Yuri (Jean Paulo Campos), alunos do ICAES, em "Vai na fé" — Foto: Divulgação

No ICAES, a faculdade de Direito da novela, não são apenas os personagens que aprendem. O telespectador também. Lá, rola todo tipo de discussão. Inspiradas tanto pelas aulas da professora Lumiar quanto pelo que acontece na vida dos jovens e nos conflitos entre os estudantes negros e periféricos, como Jenifer, Bela (Clara Serrão) e Yuri (Jean Paulo Campos), e alunos bem-nascidos, como Guiga (Mel Maia), influencer cujo bordão é “oi, gente linda” e que morre de medo do cancelamento, e Fred (Henrique Barreira), que usa as redes sociais para espalhar masculinidade tóxica.

— Acho muito legal a novela mostrar os diferentes lados das discussões. A Guiga, por exemplo, é uma menina que rica que fala coisas absurdas, mas tem muita gente igual a ela. Já a Jenifer, que é preta e pobre, vem e fala a verdade, mostra que o Brasil é um país muito injusto — opina Filipa.

Nos últimos capítulos, Fred e Guiga andaram em pé de guerra. Ele praticou importunação sexual ao beijá-la à força. Lumiar explicou que Fred poderia ser condenado a passar de um a cinco anos na prisão e propôs aos dois um acordo baseado na justiça restaurativa, que dá ao agressor a oportunidade de reparar os danos causados à vítima. Guiga exige de Fred um pedido de desculpas público, acesso às redes sociais dele para rebater críticas misóginas e que ele lhe empreste o carro (mas é convencida por Lumiar a recuar nesse ponto). Nem quando dá lições de Direito, a novela descuida do bom humor.

Também não deixa de lado a seriedade ao tratar de problemas sociais graves, como o racismo policial. Yuri foi preso injustamente duas vezes, confundido com criminosos por causa da cor de sua pele. Pesquisador da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Tcharly Briglia observa que “Vai na fé” não é uma novela panfletária, e sim capaz de conciliar entretenimento e um certo didatismo ao propor discussões que estão na ordem do dia. Vitor Martins concorda:

— “Vai na fé” convida o público para a discussão sem virar palestra, sem perder sua autenticidade. As questões são abordadas com a seriedade e a leveza necessárias para engajar o jovem — diz ele, que está acostumado a tratar de temas delicados em seus livros e espera que os próximos capítulos deem atenção às descobertas sexuais de Yuri, que se interessou por um colega do ICAES.

Rosane afirma que o equilíbrio entre entreter e ensinar é essencial. Do contrário, o espectador muda de canal.

Coadjuvantes que brilham

A atriz Clara Moneke, que interpreta Kate Cristina em "Vai na fé" — Foto: Divulgação
A atriz Clara Moneke, que interpreta Kate Cristina em "Vai na fé" — Foto: Divulgação

Na casa de Filipa, a personagem mais querida de “Vai na fé” é Kate Cristina (Clara Moneke), amiga de Jenifer que esbanja confiança e se refere a si mesma como “Katelícia”. No Twitter, o perfil @acervokate, criado mês passado para compartilhar cenas da personagem, tem 15 mil seguidores.

Vaidosa e sem papas na língua, Kate vive em conflito com a mãe, Bruna (Carla Cristina Cardoso) porque é da “geração nem-nem”: nem estuda nem trabalha. Embora faça muita comédia, já viveu sua cota de drama: envolveu-se em um relacionamento abusivo com o vilão Theo (Emilio Dantas), que tentou transformá-la na Sol dos tempos do baile funk, por quem ele era obcecado. Clara Moneke diz que o principal desafio de dar vida a Kate é não cair na caricatura e comemora a boa acolhida da personagem.

— O que eu mais escuto dos fãs é “Quero ser amigo da Kate”, “Tomara que a mãe dê uma coça nela” e “Fica com o Hugo” — conta a atriz.

Interpretado por MC Cabelinho, Hugo é um rapaz com quem Kate tem um relacionamento ioiô. Cabelinho, aliás, é o ator da novela mais buscado do Google. Só perde para Mel Maia, que também vive um papel secundário. Outra coadjuvante que rouba a cena é Vilma Campos (Renata Sorrah), mãe de Lui Lorenzo, uma atriz que vive de recordar glórias passadas. Adora recitar falas de novelas e peças de teatro que estrelou. É como se Sorrah interpretasse uma versão sem noção de si mesma.

Tcharly Briglia, da UFBA, afirma que a novela é bem-sucedida em “distribuir os conflitos narrativos para além dos protagonistas” e tem “antagonistas de peso”, como Theo e Lumiar, que não quer ver o marido, Ben (Samuel de Assis), perto de Sol, seu amor de juventude.

— Ninguém em “Vai na fé” parece personagem de novela. Todo mundo parece gente de verdade. Os coadjuvantes sustentam a novela e se conectam muito bem com os protagonistas. Não são só o núcleo de humor, têm histórias próprias — afirma Briglia. — Kate não é só a orelha de Jenifer, é uma mulher empoderada da periferia. Dona Vilma é um bálsamo! Destaco ainda Vitinho (Luis Lobianco, compositor dos hits de Lui), que é aquele gay que dá pinta mas não é caricato e estava fazendo falta nas novelas.

Luciana Petersen elogia a diversidade de personagens negros:

— Tem o Yuri, o menino inteligente que sofre racismo, a Jenifer, que vai à igreja, a Kate, que é mais assanhada, a Marlene (Elisa Lucinda, mãe de Sol), que é a mulher negra mais velha. Todos são complexos, cheio de nuances.

Só toca hino

Buchecha contracena com Sheron Menezzes na novela 'Vai na fé' — Foto: Divulgação
Buchecha contracena com Sheron Menezzes na novela 'Vai na fé' — Foto: Divulgação

“Quem canta a música de abertura da novela ‘Vai na fé’?” é a segunda pergunta que o Google mais recebe referente ao folhetim. A primeira é: “Quem é o pai de Jenifer em ‘Vai na fé’?”. Mas esta nem Sol sabe responder). A outra é mais fácil: “Vai dar certo (Vai na fé)” é interpretada por Negra Li e MC Liro, autor da música em parceria com Uiliam Pimenta, Anchieta, Julio Raposo, Daniel Musy, Pepe Santos e Marquinho O Sócio. “Com muita coragem, a gente tá de pé/ A gente segue em frente/ De cabeça erguida e sonhos pra viver/ Nada segura a gente, ninguém segura a gente”, diz a letra.

— Já estou cantando a música nos shows e está fazendo sucesso — conta Negra Li. — A letra resume a mensagem da novela. A gente sabe da nossa luta diária como mulher preta da periferia. A fé é um legado da minha família que eu sempre carreguei.

A trilha sonora de “Vai na fé” é uma inusitada combinação de música cristã (de hinos centenários como “Vencendo vem Jesus”, cantada pelo coral da igreja de Sol, a “Deus cuida de mim”, gravada por Kleber Lucas e Caetano Veloso), funk melody dos anos 1990 e 2000 (não à toa o cantor Buchecha apareceu em Piedade e cantou “Nosso sonho” com a protagonista) e, é claro, os hits de Lui Lorenzo, compostos por Cassiano Andrade e Daniel Musy.

Com os louvores e o funk melody, a novela aposta na nostalgia: de quem cresceu em igreja evangélica e de quem se lembra dos tempos em “Garota nota 100”, de MC Marcinho, fazia sucesso nos bailes e nas rádios. A canção de 1998 foi regravada este ano por Ludmilla, que fará participação na novela. Outra música de MC Marcinho que aparece em “Vai na fé” é “Glamurosa”, de 2002. Quando vendia marmita, Sol cantava para atrair clientes, mas mudava a letra: “glamurosa” não era mais a “rainha do funk”, mas a “a quentinha de frango”.

— A novela apela para a memória afetiva de quem viveu a época em que o funk melody saiu do gueto para as rádios e permite que o público mais jovem descubra MC Marcinho e Claudinho e Buchecha. Esse resgate consolida a trajetória pioneira desses artistas — afirma o crítico musical Mauro Ferreira, que elogia a novela por apresentar a um público mais amplo a “beleza melódica da música evangélica”, que muitas vezes fica restrita aos templos.

O crítico também compara as músicas de Lui Lorenzo a sucessos atuais que trazem “letras e coreografias mais erotizadas”. A canção “Joana”, por exemplo, repete o verso “Mas como ela” — que ao mesmo tempo é o início de uma pergunta (“Mas como ela foi me dispensar?”) e uma alusão sexual.

Feita para viralizar

Capa do single de Lui Lorenzo, cantor fictício de "Vai na fé" — Foto: Reprodução
Capa do single de Lui Lorenzo, cantor fictício de "Vai na fé" — Foto: Reprodução

Enquanto “Vai na fé” está no ar, Rosane Svartman se divide entre acompanhar o capítulo pela TV, trocar mensagens com os roteiristas, monitorar a audiência e espiar as redes sociais para ver o que estão falando sobre a novela. Esses dias, alguém no Twitter sugeriu que Dora (Claudia Ohana), mãe de Lumiar, “pirasse” no Refúgio, a pousada hippie onde vive. Rosane gostou da ideia.

A autora de “Vai na fé” sabe como tirar proveito das diversas mídias para bombar uma novela. Ela é especialista em “narrativas transmídia”. Defendeu uma tese de doutorado sobre o tema na Universidade Federal Fluminense (UFF), que já foi publicada em livro nos Estados Unidos e será lançada no Brasil pela editora Cobogó. E já botou a teoria em prática em outros trabalhos. Em “Malhação: sonhos”, propôs que os espectadores inventassem histórias envolvendo os personagens, as chamadas “fanfics”, que depois viraram episódios especiais. “Totalmente demais”, outra novela da sete, teve um spin-off de dez capítulos transmitidos na internet depois que a trama já estava encerrada na TV.

O maior ativo transmídia de “Vai na fé” é Lui Lorenzo, o cantor pop, meio decadente, que abusa de letras e coreografias sensuais e tem muito de Sidney Magal, Latino e Rick Martin. Os hits de Lui, como “Pool Party do Lui” e “Se eu fosse casado”, estão nas plataformas de streaming. No Spotify, ele tem mais de 104 mil ouvintes mensais. O "cantor" também frequenta programas de televisão: já foi ao “Domingão com Huck” e ao “Altas horas”, da TV Globo, e ao “Que história é essa, Porchat?”, da GNT. Também subiu ao trio elétrico de Ivete Sangalo no carnaval de Salvador.

— Outra dia uma pessoa no Twitter falou: “E agora que eu sou fã de um artista que não existe?”. Minha filha tem 20 anos e nunca tinha assistido às minhas novelas. Ela e as amigas querem ir a um show do Lui — conta a autora.

Tcharly Briglia, que estudou a obra de Rosane em sua dissertação de mestrado, afirma que autora sabe como ninguém lidar com a convergência digital e dialogar com o espectador contemporâneo, que não se contenta em assistir passivamente à novela do sofá. Prova disso são as várias sequências “viralizáveis” da novela, como as cenas em que, do nada, os personagens começam a cantar. E, é claro, os clipes de Lui.

— Todo mundo tem um Lui Lorenzo, aquele cantor cafona que você gosta em segredo — confessa Vitor Martins.

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