O que as histórias de um porteiro manipulador, de um crítico de gastronomia falido e de um diretor de museu aparentemente desconectado das pautas atuais têm em comum? As três vêm seduzindo plateias de toda a América Latina, inclusive do Brasil, com humor sarcástico e grandes nomes do cinema argentino, e saíram da mente dos hermanos Gastón Duprat e Mariano Cohn. São deles as comentadas “Meu querido zelador”, “O faz nada” (que teve participação de Robert De Niro, amigo da dupla) e “O museu”, no ar desde o mês passado — todas na plataforma Star+, que será incorporada ao Disney+.
Com filmes que são sucesso de crítica e público no currículo (“O cidadão ilustre”, de 2016, e “Concorrência oficial”, de 2021, com Penélope Cruz, são alguns exemplos), os dois falam da sétima arte quando pensam nas três produções que criaram para o streaming.
— Nossas séries são tratadas de maneira cinematográfica, ou seja, têm nosso selo autoral, nosso ponto de vista — diz Mariano, num hotel na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio.
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Ele e o parceiro de trabalho estão na cidade para compartilhar experiências no Rio2C, na Cidade das Artes, na mesa “Uma conversa com Gastón Duprat e Mariano Cohn”, nesta sexta-feira (7) , às 10h.
E um desses pontos de vista é a vigilância em não sucumbir à autocensura. Em suas obras, os autores exploram temas como privilégios, exploração, capitalismo, arte e poder por um caminho ácido, percorrido por homens inconstantes. Segundo eles, seria impossível trilhar esses roteiros se ambos se deixassem levar pela repressão que muitos autores jogam sobre si mesmos.
— Nunca levamos (o conceito de “politicamente correto”) em conta no momento de criar, de negociar ou de fechar uma ideia com uma plataforma — diz Mariano. — No cinema ou na televisão, vemos que não é necessário que uma plataforma ou um distribuidor imponha a correção política, porque o próprio autor já se reprime. É algo que vemos diariamente. Quando nos chamam, já sabem o que pensamos. Não teria sido possível fazer “O museu” de outra maneira. Muito menos “Meu querido zelador”.
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Conexão com o Brasil
A história do zelador Eliseo, que é quase um sociopata (interpretado pelo ator Guillermo Francella, que esteve no elenco dos filmes “Minha obra-prima” e “Cidadão ilustre”, também da dupla), é a produção de maior sucesso da dupla na América Latina, incluindo o Brasil. Tanto que Cohn e Duprat prepararam uma surpresa para os fãs brasileiros (“tem muito a ver com o carioca”, diz Mariano) na terceira temporada, que estreia 19 de julho, no Disney+.
— Temos muita conexão com o Brasil. “Minha obra-prima” (longa de 2018) teve cenas filmadas em Niterói — conta Mariano.
O Museu de Arte Contemporânea de Niterói, que foi cenário para o filme, aparece ainda na abertura de “O museu”. Em seis episódios, Antonio Dumas (o ator Oscar Martínez) vira diretor de uma importante instituição pública de arte moderna em Madri e enfrenta todo tipo de pressão. A grita vem de grupo sindical ao ministério da Cultura, passando por coletivo que reivindica a revisão do passado — e da arte— de um notório escultor. Todas as situações, até as mais esdrúxulas, foram vividas por Andrés Duprat, irmão de Gastón, roteirista da série e diretor do Museu Nacional de Belas Artes de Buenos Aires.
— E ele segue no cargo! — assegura Gastón.
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Os dois moradores da capital argentina frequentam o Brasil desde quando ainda se dedicavam à videoarte, no início dos anos 1990. Foi nesse meio de vídeos e museus que eles se conheceram e começaram a trabalhar juntos, criando formatos disruptivos para a TV da época. Teve programa de namoro e até uma espécie de pré-YouTube, chamado “Televisión abierta”, que estreou há 25 anos.
—Você ligava para o canal de televisão e no dia seguinte recebia uma câmera em casa — relembra Mariano. — O cameraman te filmava, e você aparecia na televisão. A única condição era que você fizesse isso, em primeira pessoa. (Podia) vender um carro, falar com o presidente, enviar uma mensagem para a namorada... Isso foi muito bem-sucedido na Argentina e depois feito em alguns países do mundo. Foi anterior a todos os reality shows.
Debate argentino
Gastón Duprat e Mariano Cohn começaram a dirigir filmes no fim dos anos 1990, época em que, afirmam, conseguiam receber financiamento do INCAA, o Instituto Nacional de Cine y Artes Audiovisuales, a principal fomentadora de cinema de seu país. O órgão tem sofrido investidas do presidente Javier Milei e sua “serra elétrica”, que, como prometido em campanha, faz cortes drásticos na área de cultura.
Mas, para Mariano Cohn, o presidente atual não é a causa de todos os problemas do setor.
— O cinema argentino já estava quebrado antes de Milei — diz ele. —Ou seja, são muitos anos de decadência, de mau funcionamento do Instituto de Cinema. O que está sendo feito agora, que me parece correto, é se discutir que tipo de ajudas ou incentivos devem existir.
O INCAA — que abastecia também o Instituto de Teatro e o de Música — recebia repasses de taxas arrecadas a partir de bilheterias dos cinemas e canais a cabo. Comissões, então, escolhiam novas produções que teriam incentivos governamentais — antes do congelamento dos repasses.
Gastón acredita que as discussões não têm abordado os prontos principais de toda a questão:
— Na Argentina, o debate é se o INCAA deve ser fechado ou continuar. Nós pensamos que deve permanecer funcionando, mas não da forma como estava. É bom discutir como isso deveria ser melhorado, para que o dinheiro vá para os artistas, para os diretores, para os filmes. Que não se gaste em burocracia.
No início do ano, mais de 300 cineastas, como o espanhol Pedro Almodóvar e o mexicano Alejandro González Iñárritu, assinaram uma petição contra o desmonte. Até o momento, mais de 150 servidores foram demitidos.
— Hoje, na Argentina, os artistas em geral são muito conservadores — diz Duprat. —Não querem que nada mude, não querem debater nada. Querem ficar onde estão, com o que tinham, agarrados, sem pensar de forma mais ampla e mais abrangente. Não têm uma postura de artistas que querem mudar as coisas para melhor.
E como os colegas do cinema veem a dupla, com essa posição?
— Não sei, somos corpos estranhos. Não temos diploma, não somos acadêmicos — diz Duprat. — Nos orgulhamos de fazer trabalhos artísticos, gostem ou não, ao mesmo tempo muito massivas e sofisticados e inquietantes. Estamos contentes com esse caminho.