Cultura

'The Handmaid’s Tale': Os acontecimentos reais que inspiraram Margaret Atwood

Segundo a autora, tudo o que acontece na série teve precedentes na vida real
Janine (Madeline Brewer) em "The Handmaid's tale" - O conto da aia" Foto: Reprodução Instagram / Reprodução Instagram
Janine (Madeline Brewer) em "The Handmaid's tale" - O conto da aia" Foto: Reprodução Instagram / Reprodução Instagram

NOVA YORK - Enquanto escrevia "O conto da aia", Margaret Atwood estabeleceu uma regra: todos os fatos da série tinham que ser baseados em algum antecedente histórico real. Com isso, ela foi capaz de combinar eventos históricos únicos de maneiras plausíveis — e assustadoras.

A série inspirada no livro, produzida pela Hulu e disponível no Brasil pelo Globoplay, seguiu a lógica semelhante: mesmo quando o programa expande o mundo estabelecido no romance e cria material original, esses fatos "poderiam ter acontecido porque tiveram precedentes no mundo real", segundo Atwood. Abaixo, ela explica, em entrevista ao "New York Times", a base histórica dos elementos mais desconcertantes do livro e da série, que terá seu primeiro episódio exibido nesta terça-feira, na TV Globo .

As roupas

Offred, uma aia, usa somente roupas vermelhas, enquanto as esposas usam apenas a cor verde e as Martas, marrom Foto: Divulgação / Divulgação
Offred, uma aia, usa somente roupas vermelhas, enquanto as esposas usam apenas a cor verde e as Martas, marrom Foto: Divulgação / Divulgação

Em Gilead, país onde se passa a trama de "Handmaid's Tale", as cores das roupas das mulheres explicitam seu status na sociedade : vermelho para as servas (aias), azul para as esposas, verde para as Martas (empregadas da casa), marrom para as tias.

— Organizar as pessoas de acordo com o que elas vestem é uma vocação humana muito, muito, muito antiga. Remonta ao primeiro código legal conhecido, o Código de Hamurabi, que afirmava que "apenas damas aristocratas tinham permissão para usar véus" — diz Atwood.

“Se você fosse pego usando véu, sendo na verdade um escravo, a pena seria a execução. Pois você estaria fingindo ser alguém que não era”

Margaret Atwood
Autora de 'O conto da Aia'

O traje das servas vem de uma variedade de fontes, como gorros e véus do período vitoriano. Em 1978, Margaret fez uma viagem ao Afeganistão , onde precisou usar um xador, que se transformou em uma influência para a trama: "Eles não impunham a todas, naquele momento, mas fizeram mais tarde."

Esses códigos de vestuário — incluindo as estrelas amarelas para os judeus e triângulos rosa para os gays no Terceiro Reich  — eram formas de "identificar pessoas, controlar pessoas", destaca a autora.

A cor atribuída à serva (vermelha) foi usada pelo Canadá para seus prisioneiros de guerra, acrescenta Atwood, por aparecer muito bem na neve. O vermelho também está presente na iconografia cristã do final da Idade Média, quando "a Virgem Maria inevitavelmente usava azul ou azul-esverdeado, e Maria Madalena sempre vestia vermelho", diz Atwood.

Cerimônias

Aias sendo punidas por não terem apedrejado uma aia considerada criminosa Foto: Divulgação / Divulgação
Aias sendo punidas por não terem apedrejado uma aia considerada criminosa Foto: Divulgação / Divulgação

Gilead tem diversas cerimônias, entre elas uma para punir inimigos políticos ou elementos disruptivos. Nela, as mulheres ficam em círculo e participam coletivamente de uma execução, em alguns casos desmembrando o acusado com as próprias mãos. No romance, o ritual é chamado de "particicution", uma junção das palavras "participation" (participação) e "execution" (execução).

Esse frenesi assassino tem um precedente muito antigo, segundo Atwood: as histórias dionisíacas da Grécia, em que os Ménades destruíam vítimas sacrificiais do deus Dionísio.

— Durante a Revolução Francesa, a princesa de Lamballe foi despedaçada e teve sua cabeça espetada em uma lança, que desfilou sob a janela de Maria Antonieta. No romance 'Germinal', de Émile Zola, baseado em empreendimentos de mineração de carvão do século XIX, o sujeito que administra a empresa exige sexo das esposas e filhas dos garimpeiros para vendê-las, porque eles não tinham dinheiro. Então, quando as mulheres têm a chance, elas o destroem e não colocam a cabeça, mas a genitália em uma lança, e desfilam ao redor.

Natalidade

Offred, uma Aia, segura sua filha recém-nascida enquanto Serena Joy, uma esposa, olha para o bebê, considerado como seu Foto: Divulgação / Divulgação
Offred, uma Aia, segura sua filha recém-nascida enquanto Serena Joy, uma esposa, olha para o bebê, considerado como seu Foto: Divulgação / Divulgação

Quando Janine da à luz e não aceita que não poderá ficar com a criança, Atwood pretende mostrar como os fins justificam os meios em Gilead.

— Há muitas utopias e distopias baseadas em economia, mas essa é uma que vai para a raiz absoluta, que é quantas pessoas você vai ter? E como as terá? Em algumas culturas, você não precisa criar leis especiais sobre isso. Mas, em outras, precisa de opressão para obter os resultados desejados.

Tiranos e ditadores como Adolf Hitler e Nicolae Ceausescu frequentemente determinaram os termos de fertilidade e criminalizaram quem não os respeitava.

“Não é por acaso que Napoleão proibiu o aborto. Ele dizia exatamente porque queria descendentes — para bucha de canhão. Adorável! ”

Margaret Atwood
Autora de 'Conto da Aia'

Na trama, as servas não são forçadas apenas a dar à luz, elas são substituídas logo após o nascimento da criança. Os bebês são afastados e elas passam a ser consideradas funcionárias de alto escalão.

Na Argentina, em 1976 , quando uma junta militar assumiu o poder, cerca de 500 crianças e recém-nascidos "desapareceram" — na verdade foram adotados por casais de militares e policiais. Centenas de milhares de crianças de populações indígenas no Canadá e na Austrália também foram separadas de suas famílias.

Infertilidade feminina

As aias, quando vão ter o bebê, considerado das esposas, passam por uma cerimônia, presenciada por todas as aias Foto: Divulgação / Divulgação
As aias, quando vão ter o bebê, considerado das esposas, passam por uma cerimônia, presenciada por todas as aias Foto: Divulgação / Divulgação

Em "Handmaid's Tale", inicialmente não há o questionamento de porque as mulheres são usadas para resolver os problemas de fertilidade do período, até que Offred visita um médico que oferece ajuda. Mas a República de Gilead nunca considerou a outra metade da equação: os homens.

— Há alguma confusão sobre isso, com tia Lydia dizendo que as esposas são estéreis. E por séculos e séculos as pessoas pensavam assim: a culpa é da mulher. O rei Henrique VIII seguia trocando esposas (e a religião do estado) e por isso Ana Bolena sabia que estava condenada quando teve um aborto espontâneo. Pensava-se que a criança estava completamente formada dentro da semente do homem, e essa semente era simplesmente plantada na mulher, como você planta em um campo — lembra Atwood.

Na série, o médico sabe que não é bem assim. E a personagem Serena Joy, esposa de um comandante, também. Tanto que sugere que Offred use Nick, um motorista, para engravidar.

— Essa foi uma das acusações contra Ana Bolena: fazer sexo com seu irmão para gerar uma criança — afirma a autora.

Mercados negros

Na imagem, Offred no boldel Jezebel's, onde encontra Moira e descobre o movimento de resistência contra o sistema de Gileade Foto: Divulgação / Divulgação
Na imagem, Offred no boldel Jezebel's, onde encontra Moira e descobre o movimento de resistência contra o sistema de Gileade Foto: Divulgação / Divulgação

Na trama, há um bordel chamado Jezebel's, onde Offred se reúne com Moira. Lá, homens poderosos fazem negócios, sexo ilícito e outras aventuras. É também um próspero mercado negro para os cidadãos comuns e, mais precisamente, a um ponto de resistência ao sistema. Atwood diz que estava relendo um livro de Norman Lewis, "Naples '44", descrevendo o mercado negro tolerado pelos Aliados em Nápoles, na Itália, durante a Segunda Guerra Mundial, "porque eles estavam ajudando a administrá-lo!".

— Tudo isso é tão antigo, mercados negros, clubes especiais com itens que você não pode conseguir em outro lugar, informações trocadas por canais subterrâneos — diz a autora.

Na edição especial narrada de  “The Handmaid's Tale”, os ouvintes descobrem que há na verdade uma cadeia de bordéis de Jezebel, alguns com campos de golfe.

— Porque é claro que as mulheres não podem mais jogar golfe. Esta foi realmente uma queixa de mulheres políticas, que todos esses acordos especiais e conversas secretas e entendimentos são alcançados em clubes de golfe, e se você não joga golfe, você está fora disso — afirma.

Movimentos de resistência

Aias em uma ação do movimento de resistência Foto: Divulgação / Divulgação
Aias em uma ação do movimento de resistência Foto: Divulgação / Divulgação

Atwood fez uma enorme pesquisa sobre os movimentos de resistência em vários países durante a Segunda Guerra Mundial. Um de seus velhos amigos, agora falecido, era membro da Resistência Francesa e saltou de pára-quedas atrás das linhas inimigas para ajudar aviadores britânicos a fugir da França.

— Seu trabalho era entrevistá-los, para garantir que fossem realmente britânicos, e não alemães fingindo ser britânicos para revelar as linhas de comunicação subterrâneas. Então ele perguntava de onde vieram, sobre futebol e tal, e se descobrisse que eram alemães, eles seriam fuzilados — relembra.

Ela também conheceu membros dos movimentos de resistência poloneses e holandeses. De acordo com Atwood, o uso de agentes femininos tem sido uma tática empregada por movimentos de resistência e extremistas islâmicos, e as roupas das servas as tornam especialmente adequadas para guardar segredos.

— Basta olhar para todos os lugares onde você pode esconder as coisas! Mangas grandes! Coloque na sua meia. Ninguém vai olhar.