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Cultura

Tom Zé faz show no Museu Nacional e critica: 'Pegou fogo por descuido, por falta de respeito'

Tropicalista abre o Festival Multiplicidade com performance projetada na fachada do Museu Nacional, destruído por incêndio em 2018
Projetada na fachada do Museu Nacional, performance de Tom Zé será transmitida pelo YouTube do Multiplicidade Foto: Leo Aversa / Divulgação
Projetada na fachada do Museu Nacional, performance de Tom Zé será transmitida pelo YouTube do Multiplicidade Foto: Leo Aversa / Divulgação

RIO — Na casa de Tom Zé , em São Paulo, nove da manhã já é dia alto. O trabalho começa às quatro, quando ele se levanta com o mesmo vigor que mantém há 84 anos, e só para às dez, hora em que se deita (“a não ser nos dias do futebol”, ri). Em rigorosa quarentena desde março, o artista fez de seu lar o palco para a performance que será projetada nesta quinta-feira na fachada do Museu Nacional , no Rio de Janeiro, durante a abertura da 16ª edição do Festival Multiplicidade .

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Transmitida nos canais do YouTube do Multiplicidade e do Oi Futuro, a partir das 20h do dia 21, a projeção mesclará trechos de um show exclusivo gravado na casa do artista a uma obra visual do japonês Daito Manabe, responsável pela apresentação do Japão no encerramento das Olimpíadas de 2016. Após a abertura, a íntegra das performances também serão disponibilizadas pelo Festival, que, este ano, acontece de forma totalmente on-line.

Para o evento, Tom Zé separou canções especiais de seu repertório, como “Tô”, “Parque industrial” e “Xiquexique”. Esta última, inclusive, lhe rendeu dores de cabeça no ano passado, ao ser utilizada sem autorização pela deputada Carla Zambelli (PSL-SP) em um vídeo que exaltava o presidente Jair Bolsonaro. A parlamentar acabou alvo de um processo judicial movido pelo artista em conjunto com Zé Miguel Wisnik, seu parceiro na composição. Embora evite comentários sobre o atual governo (“falar mal simplesmente também é uma propaganda”, diz), Tom Zé não esconde a indignação com o uso indevido da música:

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— Estou produzindo o dia todo dentro de casa, fazendo apenas o absolutamente necessário para sobreviver, e a pessoa pega um trabalho nosso e bota de graça na internet, para um governo que não tenho nenhum interesse em fazer propaganda? A ordem deles é “desrespeitem que eu garanto” — se queixa. — A ética hoje é a desética. É sobre o melhor modo de passar a perna nos outros, de progredir para ficar na estação, no lado da sociedade que manda. Para mim, isso é uma coisa muito estranha.

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O trabalho intenso a que o tropicalista se refere tem nome: "Língua brasileira", musical inspirado em sua canção homônima, gravada no álbum "Imprensa cantada", de 2003. Com estreia originalmente prevista para março do ano passado, mas adiada por causa da pandemia, o espetáculo dirigido por Felipe Hirsch desfiará as origens do Português falado no Brasil. Em casa, o tempo de Tom Zé tem sido investido nas composições inéditas que integrarão a trilha sonora da peça — e a quarentena rendeu tantas que, agora, ele pensa até em lançá-las num disco.

— Sou um trabalhador bem severo comigo mesmo, mas sou lento para compor — conta. — Faço álbum de quatro em quatro anos, mas, quando o vejo, sinto que só consegui botar 60% do que eu queria. É sempre esse desejo de melhorar, de fazer mais. Músico não tem aposentadoria compulsória. Vou morrer em cima do palco.

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Cantar no Multiplicidade já teria um gosto especial de todo modo — afinal, esta é a terceira vez que Tom Zé se apresenta no festival criado por Batman Zavareze. Mas o baiano de Irará, cuja trajetória é contada na biografia "Tom Zé: O último tropicalista", lançada no mês passado pela Ed. Sesc São Paulo após mais de um ano de sua publicação na Europa, diz que a emoção maior veio ao saber que a performance ocuparia a fachada do Museu Nacional, como um grito de socorro à Cultura e um lembrete da campanha pela reconstrução do espaço .

— Esse museu pegou fogo por descuido, por falta de respeito. Cantar lá é um modo de propagação do espírito brasileiro e de lembrar que a cultura precisa de ajuda. Tudo dela está jogado às traças — critica. — A Universidade de Londres tem um centro de estudos da América Latina. Cinquenta anos atrás, eles já falavam que o Brasil tinha uma coisa preciosa na mão, que era a sua própria canção, a sua cultura, mas que não dávamos valor como no exterior. Até hoje é assim. Antes da pandemia, por exemplo, 80% do que eu ganhava era de shows fora do Brasil.

Menor orçamento

Em tempos de desmonte do setor cultural e de perseguição a artistas nas redes sociais, o tema desta edição do Multiplicidade (inspirado na obra de Clarice Lispector ) não poderia ser mais significativo: “Liberdade é pouco. O que eu quero ainda não tem nome”. Para que ela acontecesse, entretanto, foi preciso um intenso trabalho liderado por Batman, que dividiu, pela primeira vez, a curadoria com outros artistas (Carlos Albuquerque, Nado Leal, Clelio de Paula, Amnah Asad e o chileno Nico Espinoza) — e precisou lidar com o menor orçamento da história do festival.

Inicialmente, a edição aconteceria em outubro do ano passado, mas foi remarcada (e remodelada) devido à pandemia. No fim das contas, os convidados tiveram apenas um mês para produzirem as obras que serão apresentadas. Além de Tom Zé, o evento também contará com performances pré-gravadas de artistas como a cantora Ana Frango Elétrico , indicada ao Grammy Latino 2020, e da drag queen Uýra Sodoma, atuante na causa indígena e ambiental. As atrações serão transmitidas entre os dias 21 e 23, a partir das 20h. Já o encerramento, a partir das 17h do dia 24, ficará por conta do artista visual japonês Ryoji Ikeda. Esta é a única apresentação que não ficará disponível depois.

— Antes de imaginar que viveríamos uma pandemia planetária, o pandemônio já estava instalado. Pensar em liberdade é o que está mais difícil para o Brasil de hoje. Neste momento, fazer arte é trazer um pouco de poética para as nossas vidas, para a gente achar um novo campo de imaginação. — diz Batman, que adianta: — O encerramento será uma ode ao recomeço. Assim como o Museu Nacional, precisamos ressurgir das cinzas.

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A mensagem de esperança também será deixada por Tom Zé, que fechou sua performance cantando “Menina, amanhã de manhã”, de seu álbum de 1972.

— É muito especial terminar dizendo que “a felicidade vai desabar sobre os homens” — afirma. — Quem não tem esperança não pode viver. Nem lutar.

Serviço

16º Festival Multiplicidade. De 21 a 24/01. Transmissão pelos canais do YouTube do Festival Multiplicidade e do Oi Futuro, todos os dias às 20h, com exceção do encerramento, às 17h. Gratuito.