RIO — Na casa de Tom Zé , em São Paulo, nove da manhã já é dia alto. O trabalho começa às quatro, quando ele se levanta com o mesmo vigor que mantém há 84 anos, e só para às dez, hora em que se deita (“a não ser nos dias do futebol”, ri). Em rigorosa quarentena desde março, o artista fez de seu lar o palco para a performance que será projetada nesta quinta-feira na fachada do Museu Nacional , no Rio de Janeiro, durante a abertura da 16ª edição do Festival Multiplicidade .
Tom Zé: Relembre a trajetória do artista, da Tropicália às canções eróticas de ninar
Transmitida nos canais do YouTube do Multiplicidade e do Oi Futuro, a partir das 20h do dia 21, a projeção mesclará trechos de um show exclusivo gravado na casa do artista a uma obra visual do japonês Daito Manabe, responsável pela apresentação do Japão no encerramento das Olimpíadas de 2016. Após a abertura, a íntegra das performances também serão disponibilizadas pelo Festival, que, este ano, acontece de forma totalmente on-line.
Para o evento, Tom Zé separou canções especiais de seu repertório, como “Tô”, “Parque industrial” e “Xiquexique”. Esta última, inclusive, lhe rendeu dores de cabeça no ano passado, ao ser utilizada sem autorização pela deputada Carla Zambelli (PSL-SP) em um vídeo que exaltava o presidente Jair Bolsonaro. A parlamentar acabou alvo de um processo judicial movido pelo artista em conjunto com Zé Miguel Wisnik, seu parceiro na composição. Embora evite comentários sobre o atual governo (“falar mal simplesmente também é uma propaganda”, diz), Tom Zé não esconde a indignação com o uso indevido da música:
Incêndio no Museu Nacional: Brasil é um país sem memória? Especialistas debatem
— Estou produzindo o dia todo dentro de casa, fazendo apenas o absolutamente necessário para sobreviver, e a pessoa pega um trabalho nosso e bota de graça na internet, para um governo que não tenho nenhum interesse em fazer propaganda? A ordem deles é “desrespeitem que eu garanto” — se queixa. — A ética hoje é a desética. É sobre o melhor modo de passar a perna nos outros, de progredir para ficar na estação, no lado da sociedade que manda. Para mim, isso é uma coisa muito estranha.
A ética da imunização: Fila da vacina põe em xeque privilégios no país do cercadinho
Relembre e ouça faixas de dez discos essenciais da carreira de Tom Zé
O trabalho intenso a que o tropicalista se refere tem nome: "Língua brasileira", musical inspirado em sua canção homônima, gravada no álbum "Imprensa cantada", de 2003. Com estreia originalmente prevista para março do ano passado, mas adiada por causa da pandemia, o espetáculo dirigido por Felipe Hirsch desfiará as origens do Português falado no Brasil. Em casa, o tempo de Tom Zé tem sido investido nas composições inéditas que integrarão a trilha sonora da peça — e a quarentena rendeu tantas que, agora, ele pensa até em lançá-las num disco.
— Sou um trabalhador bem severo comigo mesmo, mas sou lento para compor — conta. — Faço álbum de quatro em quatro anos, mas, quando o vejo, sinto que só consegui botar 60% do que eu queria. É sempre esse desejo de melhorar, de fazer mais. Músico não tem aposentadoria compulsória. Vou morrer em cima do palco.
Jards Macalé: 'Quando estava nos piores momentos, continuei a produzir, para me manter vivo'
Cantar no Multiplicidade já teria um gosto especial de todo modo — afinal, esta é a terceira vez que Tom Zé se apresenta no festival criado por Batman Zavareze. Mas o baiano de Irará, cuja trajetória é contada na biografia "Tom Zé: O último tropicalista", lançada no mês passado pela Ed. Sesc São Paulo após mais de um ano de sua publicação na Europa, diz que a emoção maior veio ao saber que a performance ocuparia a fachada do Museu Nacional, como um grito de socorro à Cultura e um lembrete da campanha pela reconstrução do espaço .
— Esse museu pegou fogo por descuido, por falta de respeito. Cantar lá é um modo de propagação do espírito brasileiro e de lembrar que a cultura precisa de ajuda. Tudo dela está jogado às traças — critica. — A Universidade de Londres tem um centro de estudos da América Latina. Cinquenta anos atrás, eles já falavam que o Brasil tinha uma coisa preciosa na mão, que era a sua própria canção, a sua cultura, mas que não dávamos valor como no exterior. Até hoje é assim. Antes da pandemia, por exemplo, 80% do que eu ganhava era de shows fora do Brasil.
Menor orçamento
Em tempos de desmonte do setor cultural e de perseguição a artistas nas redes sociais, o tema desta edição do Multiplicidade (inspirado na obra de Clarice Lispector ) não poderia ser mais significativo: “Liberdade é pouco. O que eu quero ainda não tem nome”. Para que ela acontecesse, entretanto, foi preciso um intenso trabalho liderado por Batman, que dividiu, pela primeira vez, a curadoria com outros artistas (Carlos Albuquerque, Nado Leal, Clelio de Paula, Amnah Asad e o chileno Nico Espinoza) — e precisou lidar com o menor orçamento da história do festival.
Inicialmente, a edição aconteceria em outubro do ano passado, mas foi remarcada (e remodelada) devido à pandemia. No fim das contas, os convidados tiveram apenas um mês para produzirem as obras que serão apresentadas. Além de Tom Zé, o evento também contará com performances pré-gravadas de artistas como a cantora Ana Frango Elétrico , indicada ao Grammy Latino 2020, e da drag queen Uýra Sodoma, atuante na causa indígena e ambiental. As atrações serão transmitidas entre os dias 21 e 23, a partir das 20h. Já o encerramento, a partir das 17h do dia 24, ficará por conta do artista visual japonês Ryoji Ikeda. Esta é a única apresentação que não ficará disponível depois.
— Antes de imaginar que viveríamos uma pandemia planetária, o pandemônio já estava instalado. Pensar em liberdade é o que está mais difícil para o Brasil de hoje. Neste momento, fazer arte é trazer um pouco de poética para as nossas vidas, para a gente achar um novo campo de imaginação. — diz Batman, que adianta: — O encerramento será uma ode ao recomeço. Assim como o Museu Nacional, precisamos ressurgir das cinzas.
Clarice Lispector, cem anos: Amigas relembram intuições, dramas e diferenças geracionais
A mensagem de esperança também será deixada por Tom Zé, que fechou sua performance cantando “Menina, amanhã de manhã”, de seu álbum de 1972.
— É muito especial terminar dizendo que “a felicidade vai desabar sobre os homens” — afirma. — Quem não tem esperança não pode viver. Nem lutar.
Serviço
16º Festival Multiplicidade. De 21 a 24/01. Transmissão pelos canais do YouTube do Festival Multiplicidade e do Oi Futuro, todos os dias às 20h, com exceção do encerramento, às 17h. Gratuito.