Cultura

Tradutora carioca publica cartas trocadas com Carlos Drummond de Andrade

Adalgisa Campos da Silva começou a se corresponder com o poeta depois de que ele pediu, no jornal, que os jovens parassem de lhe enviar seus textos
O poeta Carlos Drummond de Andrade, em 1984 Foto: Alberto Jacob / O GLOBO
O poeta Carlos Drummond de Andrade, em 1984 Foto: Alberto Jacob / O GLOBO

SÃO PAULO – Em maio de 1973, a hoje tradutora Adalgisa Campos da Silva abriu o “Jornal do Brasil” numa certa manhã e topou com o poema “Apelo aos meus dessemelhantes em favor da paz”, de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), que assinava uma coluna ali. Ele pedia aos escritores aprendizes que não lhe enviassem originais “para ler, para corrigir, para louvar”; aos “repórteres de vespertinos”, que não tentassem entrevistá-lo; e, a todos, que o deixassem em paz: “Quero a paz das estepes / a paz dos descampados / a paz do Pico de Itabira.”

Tocada pelos versos, Adalgisa, que havia abandonado a faculdade de Jornalismo para cuidar de uma bebê recém-nascida, resolveu ignorar a súplica do poeta. Remeteu-lhe versos de sua própria lavra, “Desagravo ao desagrado do poeta”: “A paz esteja convosco, Poeta! / E comigo também.”

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Para a surpresa de Adalgisa, Drummond enviou algumas linhas como resposta: “Quanta sensibilidade e compreensão em seu belo poema!”. Adalgisa não queria que a conversa morresse e se animou a escrever outra carta. Até que um dia, o telefone de sua casa tocou. “Quem fala?”, perguntou ela. “Carlos Drummond de Andrade.”

— Drummond era tido como uma pessoa sisuda, mas, ao telefone, foi afável e cordial ao puxar assunto comigo — conta Adalgisa, que já traduziu autores como Jojo Moyes, Stephen King e Anne Rice. — Eu contei que escrevia e guardava na gaveta, e ele me disse: “Livro é igual a bolo, tem que esperar esfriar para publicar.”

Nos anos seguintes, Adalgisa e Drummond trocaram um punhado de cartas, que ela esperou esfriar antes de publicá-las, no meio da pandemia, por insistência de uma prima. A tradutora chegou a perguntar a pessoas do mercado editorial sobre uma possível publicação do material, mas optou por bancar ela própria uma edição artesanal e imprimiu uma centena de cópias de “Uma correspondência”.

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O livro traz textos nos quais Adalgisa contextualiza a correspondência, fac-símiles das cartas e um prefácio assinado pelo poeta Alexei Bueno. Adalgisa tem distribuído a tiragem, já quase esgotada, aos amigos — ela também enviou um exemplar ao neto de Drummond.

A jornalista Anna Ramalho, que contou ao GLOBO da existência da publicação, gostou do que leu:

— O livrinho é uma preciosidade. Adalgisa é tão reservada quanto era Drummond. A correspondência mostra o encontro de duas almas tímidas.

Canção para Maria Gabriela

Depois daquele telefonema em que conversaram sobre as semelhanças entre livros e bolos, em junho de 1973, Adalgisa e o poeta só voltaram a se corresponder no começo de 1975. Adalgisa havia dado à luz a sua segunda filha, Maria Gabriela, e, durante a cesária, teve o intestino perfurado. Passou mais de um mês no hospital e chegou a ficar três dias inteiros inconsciente.

Quando acordou, ainda sem conseguir se sentar na cama, pediu papel e lápis e se pôs a escrever. Uma tia que a visitava todos os dias assistiu à cena e contou tudo a Drummond, com quem se encontrava às vezes na casa do advogado e bibliófilo Plínio Doyle. O poeta se compadeceu e compôs “Canção para Maria Gabriela”: “Pequenina Maria, suave Gabriela, / Combinação do céu e sonho, sobre a terra, / seus miúdos pés terão um dia / a firmeza do amor a traçar o caminho.”

"Canção para Maria Gabriela", poema de Carlos Drummond de Andrade para a filha recém-nascida de Adalgisa Campos da Silva Foto: Reprodução
"Canção para Maria Gabriela", poema de Carlos Drummond de Andrade para a filha recém-nascida de Adalgisa Campos da Silva Foto: Reprodução

Adalgisa botou o poema num porta-retratos na varanda de casa, mas o sol enrugou o papel e fez escorrer a tinta turquesa que Drummond usara para assinar os versos. Para não perder a relíquia, ela escreveu ao poeta, contou o que o sol fizera e perguntou se ele podia passar a limpo o poema. Ele topou e ainda enviou novos versos, inspirados por uma flor de maio que Adalgisa lhe enviara de presente.

Adalgisa continuou escrevendo a Drummond nos anos seguintes e recebendo cartas e versos simpáticos como resposta. Em maio de 1984, ela escreveu para reclamar do tempo ruim que fazia (“esta bruma que esconde o Cristo e embaça os nossos horizontes”) e perguntar a opinião do poeta sobre o fracasso da campanha das Diretas.

Em vez de enviar a resposta pelo correio, Drummond publicou-a no “Jornal do Brasil”. Quando leu a crônica “Papo com Andreia”, Adalgisa soube que era a ela que o poeta se dirigia: “Andreia me intima a protestar contra o atual mês de maio no Rio.”

Capa de "Uma correspondência", reunião das cartas trocadas entre o poeta Carlos Drummond de Andrade e a tradutora Adalgisa Campos da Silva Foto: Reprodução
Capa de "Uma correspondência", reunião das cartas trocadas entre o poeta Carlos Drummond de Andrade e a tradutora Adalgisa Campos da Silva Foto: Reprodução

Apesar de nunca terem se conhecido pessoalmente, os dois trocaram mais algumas cartas até outubro daquele ano, quando Drummond se aposentou como cronista, e Adalgisa perdeu o gancho de diálogo com o poeta. Ele viria a falecer quase três anos depois.