RIO — Bastou uma declaração do ator Rodrigo Pandolfo , afirmando que o casamento gay no filme “Minha mãe é uma peça 3” não será selado com beijo por opção do autor e protagonista Paulo Gustavo , para as redes sociais agirem. O nome do comediante liderou o ranking de assuntos mais comentados do Twitter na quinta-feira, com uma enxurrada de mensagens imperativas propondo boicote ao filme e à carreira. Errado ou não, Paulo Gustavo, que já causara polêmica ao não beijar o marido Thales Bretas no casamento dos dois em 2015, nem teve chance de defesa.
Conhecido como “cultura do cancelamento”, o tribunal sumário das redes tornou-se comum desde a explosão do movimento #MeToo , pautando o comportamento on-line de marcas e pessoas públicas.
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Há casos mais graves, como os do ator Kevin Spacey , do comediante Bill Cosby e do cantor R. Kelly , cancelados por acusações de crimes sexuais. E outros que podem soar banais, como o da cantora pop Taylor Swift, que viu a hashtag #TaylorSwiftIsCancelled bombar apenas por bater de frente com o casal Kanye West e Kim Kardashian . Por aqui, o tribunal das redes já sentenciou nomes como Neymar , Nego do Borel e Anitta — a cantora já foi acusada, por exemplo, de se valer do público LGBT sem defender as bandeiras da causa.
![Kanye West interrompe discurso de Taylor Swift, no Video Music Awards da MTV, em Nova York Reuters](https://ogimg.infoglobo.com.br/in/2955693-a1d-689/FT1086A/Kanye-West-interrompe-discurso-de-Taylor-Swift-no-Video-Music-Awards-da-MTV-em-Nova-YorkReuters.jpg)
“Quando você diz que alguém está cancelado, não é uma série de TV. É um ser humano. Você está enviando uma grande quantidade de mensagens mandando essa pessoa calar a boca, desaparecer, ou também pode ser percebido como um ‘se mata!’”, criticou Taylor na reportagem de capa da revista “Vogue” de setembro.
— Podemos ver a cultura do cancelamento como a necessidade mesquinha de destruir alguém, uma justiça nas mídias sociais — explica John Suler, professor da Rider University, nos EUA, e autor de livros sobre ciberpsicologia (a psicologia da web). — Vivemos tempos difíceis, em que pessoas se sentem escanteadas, frustradas, irritadas. E estão buscando alvos para desabafar suas frustrações. A mídia social torna fácil unir forças com outros para exalar essas insatisfações.
Para Lisa Nakamura, professora na Universidade de Michigan que estuda debates levantados nas redes sociais sobre gênero, sexualidade e raça, a cultura do cancelamento nasce do desejo de controle. Ela cita o caso do youtuber americano Logan Paul , atacado por exibir num de seus vídeos o corpo de um suicida no Japão, sem sanções do YouTube. Diante da aparente falta de regras, os usuários resolvem fazer justiça com os próprios posts.
— Cria-se assim um senso de responsabilidade, que é aleatório e desregulado, mas precisava surgir, porque coisas socialmente condenáveis são postadas o tempo todo — aponta Lisa. — Surge um acordo não escrito de não amplificar nem dar dinheiro para quem comete esses deslizes. Quando você priva alguém de atenção, está privando-o de um meio de vida.
![Atriz Roseanne Barr teve série cancelada após tweet racista Foto: VALERIE MACON / AFP](https://ogimg.infoglobo.com.br/in/22732405-c72-90f/FT1086A/77050635_FILESIn-this-file-photo-taken-on-January-08-2018-actress-Roseanne-Barr-attends-the-Di.jpg)
Diretor de filmes da franquia “Guardiões da Galáxia”, o cineasta James Gunn, por exemplo, foi demitido da Marvel depois que publicações antigas suas, fazendo piadas de mau gosto envolvendo mulheres e abuso sexual de crianças, ressurgiram na rede — após comoção e pressão do elenco, ele seria readmitido no estúdio oito meses depois . No ano passado, no mesmo Twitter, a veterana atriz Roseanne Barr fez um comentário racista contra Valerie Jarrett , assessora de Barack Obama, às vésperas da reestreia de sua série de TV “Roseanne”. Ela foi demitida do próprio programa, que passou a se chamar “The Connors” .
Enquanto isso, no Brasil, o cantor Nego do Borel anunciou o cancelamento da gravação de seu DVD por conta das críticas que vinha recebendo por chamar a transexual Luisa Marilac de “homem”. Também neste ano, Valesca Popozuda, muito identificada com o movimento LGBT, teve shows cancelados após postar um vídeo com o maquiador e influencer Agustin Fernandez, apoiador do presidente Jair Bolsonaro — no Twitter, a história ganhou a hashtag #RIPValesca (“descanse em paz, Valesca”).
Nestes casos, lembra o ciberpsicólogo Suler, as redes agem como um tribunal da opinião popular, um “ambiente de Velho Oeste onde algumas pessoas querem ser juízes, jurados e executores”. E isso pode exigir ações mais drásticas.
Drible de Neymar
O escritor Michel Laub, autor do romance “O tribunal da quinta-feira”, em que o narrador é vítima de um massacre virtual, cita o caso de Neymar com a modelo Najila Trindade. Diante das acusações de estupro e da avalanche de críticas, o jogador optou por divulgar um vídeo com um suposto diálogo de cunho sexual por WhatsApp, expondo fotos íntimas da modelo.
— Hoje, o importante é a imagem. Ele preferiu cometer um crime, divulgando o vídeo de forma ilegal, do que ter a imagem arranhada. Na Justiça comum, Neymar poderia discutir a questão do estupro. Na internet, 24 horas de ataques podem ser suficientes para que patrocinadores cancelem contratos — lembra o escritor. — A internet mudou os parâmetros do que é público e do que é privado, do que é verdade ou mentira. E isso tende a piorar, com o aumento das fake news, das deepfakes ( tecnologia que cria vídeos falsos e realistas ).
É como se, diante do tribunal da internet, pessoas públicas precisassem viver em um eterno gerenciamento de imagem. Para Arthur Bender, autor do livro “Personal branding” e especialista em gestão de crise, a reputação está sempre em construção, suportando golpes (ou não) dependendo do que foi construído.
— Inferimos as atitudes futuras de uma celebridade pelo histórico de atitudes passadas. Quem é agressivo ou leviano, por exemplo, talvez seja julgado por esses antecedentes — diz Bender. — Por isso, afirmo: o benefício da dúvida e a chance de perdão são criados muito antes das crises. No fim das contas, reputação é pura previsibilidade.