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Cultura

Tribunal da internet: por que celebridades estão sendo 'canceladas' nas redes sociais?

Especialistas explicam como esse clima de Velho Oeste serve de alívio para frustrações contemporâneas, ao dar sensação de poder a fãs e haters
Artistas que se tornaram alvo de detratores nas redes sociais: no alto, a atriz Roseanne Barr, o diretor James Gunn, o cantor Nego do Borel; acima, o comediante Paulo Gustavo, a funkeira Valesca Popozuda e a popstar Anitta Foto: Arte de André Mello / Agência O Globo
Artistas que se tornaram alvo de detratores nas redes sociais: no alto, a atriz Roseanne Barr, o diretor James Gunn, o cantor Nego do Borel; acima, o comediante Paulo Gustavo, a funkeira Valesca Popozuda e a popstar Anitta Foto: Arte de André Mello / Agência O Globo

RIO — Bastou uma declaração do ator Rodrigo Pandolfo , afirmando que o casamento gay no filme “Minha mãe é uma peça 3” não será selado com beijo por opção do autor e protagonista Paulo Gustavo , para as redes sociais agirem. O nome do comediante liderou o ranking de assuntos mais comentados do Twitter na quinta-feira, com uma enxurrada de mensagens imperativas propondo boicote ao filme e à carreira. Errado ou não, Paulo Gustavo, que já causara polêmica ao não beijar o marido Thales Bretas no casamento dos dois em 2015, nem teve chance de defesa.

Conhecido como “cultura do cancelamento”, o tribunal sumário das redes tornou-se comum desde a explosão do movimento #MeToo , pautando o comportamento on-line de marcas e pessoas públicas.

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Há casos mais graves, como os do ator Kevin Spacey , do comediante Bill Cosby e do cantor R. Kelly , cancelados por acusações de crimes sexuais. E outros que podem soar banais, como o da cantora pop Taylor Swift, que viu a hashtag #TaylorSwiftIsCancelled bombar apenas por bater de frente com o casal Kanye West e Kim Kardashian . Por aqui, o tribunal das redes já sentenciou nomes como Neymar , Nego do Borel e Anitta — a cantora já foi acusada, por exemplo, de se valer do público LGBT sem defender as bandeiras da causa.

Kanye West interrompe discurso de Taylor Swift, no Video Music Awards da MTV, em Nova York Reuters
Kanye West interrompe discurso de Taylor Swift, no Video Music Awards da MTV, em Nova York Reuters

“Quando você diz que alguém está cancelado, não é uma série de TV. É um ser humano. Você está enviando uma grande quantidade de mensagens mandando essa pessoa calar a boca, desaparecer, ou também pode ser percebido como um ‘se mata!’”, criticou Taylor na reportagem de capa da revista “Vogue” de setembro.

— Podemos ver a cultura do cancelamento como a necessidade mesquinha de destruir alguém, uma justiça nas mídias sociais — explica John Suler, professor da Rider University, nos EUA, e autor de livros sobre ciberpsicologia (a psicologia da web). — Vivemos tempos difíceis, em que pessoas se sentem escanteadas, frustradas, irritadas. E estão buscando alvos para desabafar suas frustrações. A mídia social torna fácil unir forças com outros para exalar essas insatisfações.

Para Lisa Nakamura, professora na Universidade de Michigan que estuda debates levantados nas redes sociais sobre gênero, sexualidade e raça, a cultura do cancelamento nasce do desejo de controle. Ela cita o caso do youtuber americano Logan Paul , atacado por exibir num de seus vídeos o corpo de um suicida no Japão, sem sanções do YouTube. Diante da aparente falta de regras, os usuários resolvem fazer justiça com os próprios posts.

— Cria-se assim um senso de responsabilidade, que é aleatório e desregulado, mas precisava surgir, porque coisas socialmente condenáveis são postadas o tempo todo — aponta Lisa. — Surge um acordo não escrito de não amplificar nem dar dinheiro para quem comete esses deslizes. Quando você priva alguém de atenção, está privando-o de um meio de vida.

Atriz Roseanne Barr teve série cancelada após tweet racista Foto: VALERIE MACON / AFP
Atriz Roseanne Barr teve série cancelada após tweet racista Foto: VALERIE MACON / AFP

Diretor de filmes da franquia “Guardiões da Galáxia”, o cineasta James Gunn, por exemplo, foi demitido da Marvel depois que publicações antigas suas, fazendo piadas de mau gosto envolvendo mulheres e abuso sexual de crianças, ressurgiram na rede — após comoção e pressão do elenco, ele seria readmitido no estúdio oito meses depois . No ano passado, no mesmo Twitter, a veterana atriz Roseanne Barr fez um comentário racista contra Valerie Jarrett , assessora de Barack Obama, às vésperas da reestreia de sua série de TV “Roseanne”. Ela foi demitida do próprio programa, que passou a se chamar “The Connors” .

Enquanto isso, no Brasil, o cantor Nego do Borel anunciou o cancelamento da gravação de seu DVD por conta das críticas que vinha recebendo por chamar a transexual Luisa Marilac de “homem”. Também neste ano, Valesca Popozuda, muito identificada com o movimento LGBT, teve shows cancelados após postar um vídeo com o maquiador e influencer Agustin Fernandez, apoiador do presidente Jair Bolsonaro — no Twitter, a história ganhou a hashtag #RIPValesca (“descanse em paz, Valesca”).

Nestes casos, lembra o ciberpsicólogo Suler, as redes agem como um tribunal da opinião popular, um “ambiente de Velho Oeste onde algumas pessoas querem ser juízes, jurados e executores”. E isso pode exigir ações mais drásticas.

Drible de Neymar

O escritor Michel Laub, autor do romance “O tribunal da quinta-feira”, em que o narrador é vítima de um massacre virtual, cita o caso de Neymar com a modelo Najila Trindade. Diante das acusações de estupro e da avalanche de críticas, o jogador optou por divulgar um vídeo com um suposto diálogo de cunho sexual por WhatsApp, expondo fotos íntimas da modelo.

— Hoje, o importante é a imagem. Ele preferiu cometer um crime, divulgando o vídeo de forma ilegal, do que ter a imagem arranhada. Na Justiça comum, Neymar poderia discutir a questão do estupro. Na internet, 24 horas de ataques podem ser suficientes para que patrocinadores cancelem contratos — lembra o escritor. — A internet mudou os parâmetros do que é público e do que é privado, do que é verdade ou mentira. E isso tende a piorar, com o aumento das fake news, das deepfakes ( tecnologia que cria vídeos falsos e realistas ).

É como se, diante do tribunal da internet, pessoas públicas precisassem viver em um eterno gerenciamento de imagem. Para Arthur Bender, autor do livro “Personal branding” e especialista em gestão de crise, a reputação está sempre em construção, suportando golpes (ou não) dependendo do que foi construído.

— Inferimos as atitudes futuras de uma celebridade pelo histórico de atitudes passadas. Quem é agressivo ou leviano, por exemplo, talvez seja julgado por esses antecedentes — diz Bender. — Por isso, afirmo: o benefício da dúvida e a chance de perdão são criados muito antes das crises. No fim das contas, reputação é pura previsibilidade.