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Cultura

'Tudo o que ia para debaixo do tapete se revelou', diz psicanalista Maria Homem

Popular com série de vídeos no YouTube, paulistana lança livro sobre impacto da pandemia na saúde mental e nos relacionamentos: ‘O efeito de tudo isso é o enlouquecimento’
A psicanalista Maria Homem: ‘Temos que fazer o luto da norma e do normal’ Foto: Alf Ribeiro / Alf Ribeiro
A psicanalista Maria Homem: ‘Temos que fazer o luto da norma e do normal’ Foto: Alf Ribeiro / Alf Ribeiro

SÃO PAULO — Se você frequenta o YouTube atrás de terapia, decerto já topou com os vídeos da psicanalista paulistana Maria Homem, que têm títulos como "O eu contra si mesmo" e "Por que a traição dói?". Nos últimos meses, Maria participou de muitas lives e podcasts e deu um punhado de entrevistas para ajudar os brasileiros, encolhidos em seus divãs domésticos e com medo do novo coronavírus, a não fugirem da angústia, a encarar o próprio desejo e a elaborar o luto.

Psicanalista clínica, estudiosa de Clarice Lispector e professora da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), Maria colabora com a Casa do Saber e, nesta semana, lançou "Lupa da alma: quarentena-revelação", disponível em e-book e em impressão sob demanda. No livro, que é parte da "Coleção 2020" (de ensaios sobre a pandemia publicados pela Todavia), ela esmiúça as questões que a quarentena nos impôs e especula sobre os rastros mentais que o "modo Zoom de viver" deixará em nossa saúde mental.

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Ao GLOBO, Maria falou sobre a “carentena” (a carência dos solteiros durante a pandemia ), e defendeu que, em vez de perder tempo com saudade do velho normal, abandonemos de vez “a bengala da norma e do normal”.

O que a quarentena revelou?

A pandemia nos colocou num duplo experimento subjetivo. Estamos todos ameaçados por um vírus letal, que nos paralisa e impõe o confinamento, o medo ou a negação. Também relatamos nossa experiência em tempo real, num "Big Brother" planetário. Juntas, essas duas torções desvelaram vários aspectos do nosso funcionamento psíquico. Tudo o que ia para debaixo do tapete se revelou. A começar do eu, das estruturas subjetivas e da maneira como cada um sofre, mas também das nossas relações de intimidade afetivo-sexuais (os namorados que vão morar juntos, o casamento que se desfaz). Vêm as perguntas: o que estou fazendo com a minha vida? Quem sou eu? Quem é o outro?

No livro, ao comentar a "carentena", você deseja que, no futuro, não precisemos mais “separar tanto corpo e alma e todos os seus derivados, como amor e sexo”. Separar amor e sexo não foi um ganho da modernidade?

Poder exercer a sexualidade e o corpo foi um ganho para todos. O idealismo platônico-cristão tirou o corpo da jogada. Fez uma hierarquia. Disse que a alma era pura e o corpo, corrupto e pecaminoso. Na modernidade, caímos nessa mesma divisão de que tentamos escapar e, como diria Freud, fizemos uma cisão egoica e colocamos o sentir de um lado e o gozar de outro. Isso está na construção da masculinidade, que separa as figuras da mãe e da puta, amor e sexo. Mas talvez dê para amar e gozar com o mesmo objeto. O isolamento proíbe os corpos. Você pode falar sacanagem na internet, mandar nude, mas o que quer é alguém para conversar, para passar algumas horas na angústia da madrugada.

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Que rastros o "modo Zoom de viver" deixará na nossa saúde mental?

O modo Zoom explicita algumas linhas de força da nossa cultura. O primeiro deles é a liquefação de simbólicos baseados em oposições yin-yang: sim e não, macho e fêmea, dia útil e fim de semana, trabalho e casa. Por um lado, é interessante não ter congelamentos, poder transitar, fluir. Por outro lado, se a parede aprisiona, a ausência da parede dá angústia. Numa casa modernista sem paredes, ninguém consegue fazer home office. Trabalhar de casa até te dá mais liberdade, mas também dá liberdade ao seu chefe para te pedir mais trabalho. Legitima a exploração do corpo, da mente e do trabalho do outro. Lembra quando o trabalho era das 9h às 17h?

Como obter mais vantagens e menos desvantagens dessa "liquefação dos marcos simbólicos baseados em oposições"?

Fazendo a revolução (risos) .

Qual revolução?

Temos que redesenhar algumas fronteiras, mesmo que móveis e transformáveis, e lidar com o limite, a falta, a castração. Para isso, precisamos ultrapassar o paradigma da produtividade que escraviza a todos e enriquece poucos. Isso não é comunismo. Temos que ter coragem de olhar para a desigualdade. Em 2020, os ricos ficaram mais ricos e os pobres morreram mais. Uns têm mais direito à vida e ao tempo do que outros. Não dá para exigir que uma pessoa faça o trabalho de todas as que foram demitidas. Nem que pais banquem seus filhos mal pagos até os 35 anos para que os patrões deles fiquem ainda mais ricos.

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Já que falamos de limites, como lidamos com os que a pandemia nos impôs?

Para dar uma resposta "curta e grossa": o efeito de tudo isso é o enlouquecimento. Vários tipos de enlouquecimento. Compulsões, medos, delírios, surtos, agressividade, falta de empatia, paranoia, transtornos de imagem e de alimentação, aumento do consumo de todas as substâncias minimamente psicotrópicas: de chocolate à cocaína, de álcool a opioides.

Haja psicanálise!

Pois é! A procura por análise aumentou muito. Assim como a demanda por espaços de simbolização, de subjetivação, e por redes de apoio.

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Você está nas redes sociais, faz lives e vídeos para o YouTube. Como um psicanalista intervém no debate público?

Toda psicologia tem, em sua base, uma pergunta sobre a sociedade: quem nós somos e como vivemos? Freud diz isso em “Psicologia das massas e análise do eu”, um texto de 1921. Não há psicologia estritamente individual, porque todo indivíduo é formado por elos fundamentais com outros indivíduos. Não existe o eu sem o outro. Até o analista que só clinica, que passa o dia na poltrona escutando pacientes, também está escutando a pólis. Se não está, erra. Porque não se trata do sofrimento de Pedro ou Paulo, mas do sofrimento de alguém com aquela travessia edípica lidando com questões do século XXI. Um psicanalista não terá uma escuta fina se não escutar as opressões de classe, gênero, raça etc.

Você termina o livro lembrando que a “operação central do luto” é “pegar um pouco daquilo que se foi e fazê-lo nosso”. Precisamos fazer o luto do “velho normal”? Como?

Eu seria ainda mais radical e diria que precisamos fazer o luto da norma e do normal, das normatizações e normalizações que se contrapõem ao patológico e dão na heteronormatividade, na branquitude etc. Podemos abrir mão do normal como padrão e representação engessada do ideal. Gostaria de viver num mundo que não precisasse da bengala da norma e do normal e descobrisse vários formatos de vida: um mais on-line, um mais off-line; um monogâmico, um poligâmico. Nossa primeira tarefa é fazer o luto da norma para nos conectarmos honestamente com nós mesmos e com nosso desejo, para nos apropriarmos plenamente do que já somos, mas que ainda não desabrochou.

Capa de "Lupa da alma: quarentena-revelação", livro da psicanalista Maria Homem publicado pela Todavia Foto: Reprodução / Divulgação
Capa de "Lupa da alma: quarentena-revelação", livro da psicanalista Maria Homem publicado pela Todavia Foto: Reprodução / Divulgação

Serviço:

"Lupa da alma: quarentena-revelação"

Autora: Maria Homem.

Editora: Todavia.

Páginas: 80.

Preço: R$ 30.