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Cultura

Velha Guarda da Portela prepara festa de 50 anos, mas fará apenas um show neste carnaval

Guardião de composições centenárias, grupo luta para manter a chama acesa: 'Nosso samba não tem agrotóxico, é puro e não pré-fabricado', diz Monarco
Os 12 integrantes da Velha Guarda da Portela: escola prepara festa de 50 anos na quadra, em Madureira Foto: Leo Aversa
Os 12 integrantes da Velha Guarda da Portela: escola prepara festa de 50 anos na quadra, em Madureira Foto: Leo Aversa

De segunda a sexta, Marquinho Diniz acorda às seis da manhã para bater laje. Bota o capacete de proteção e vai construir casas e resolver pepinos de elétrica ou hidráulica na vizinhança. Mas no próximo dia 11 de abril, o que o pandeirista vai vestir é um elegante terno azul e branco para subir ao palco da quadra da Portela, em Madureira. Festejará os 50 anos da Velha Guarda da escola, da qual é um dos 12 componentes e seu avô, Monarco, de 86 anos, o baluarte mais antigo e presidente de honra. A celebração — que inclui lançamento de selo comemorativo e a continuação da vaquinha para produzir um curta-metragem sobre a história do grupo —, já tem presença confirmada de Paulinho da Viola. Outros portelenses ilustres, como Marisa Monte, Zeca Pagodinho, Diogo Nogueira, Roberta Sá e Maria Rita, serão convidados.

Entretanto, cinco décadas de bons serviços prestados à música brasileira — como guardiã de um repertório que inclui sambas centenários de Paulo da Portela, Manacéa, Mijinha, Heitor dos Prazeres, Candeia, João da Gente, Casquinha, etc. — não garantem aos integrantes do coletivo tranquilidade financeira. Paralelamente à luta cotidiana pela preservação e o exercício da cultura popular, os artistas precisam fazer bicos em outras áreas para completar o orçamento.

Camarão Neto (surdo) vende roupa; Jane Karla (pastora) faz artesanato; Áurea Maria (pastora e filha de Manacéa) é assistente social; Evandro Lima (violão) gerencia clínica médica. Com 73 anos, Marquinho do Pandeiro é taxista. Tia Surica continua temperando suas feijoadas. Prestes a completar 80 anos (em novembro), ela às vezes encara mais de um show por dia para engordar o cachê. De vez em quando em lugares sem ventilação. Sábado retrasado, passou mal de tanto calor e desistiu da apresentação seguinte.

Sem céu de brigadeiro

A falta de convites para shows, porém, hoje é uma realidade. Sabe quantos serão no carnaval? Apenas um, na segunda-feira. E no próprio camarote da Portela, no Sambódromo. Nem a anunciada volta do Terreirão do Samba (fechado desde abril de 2019 após uma jovem morrer eletrocutada), trouxe boas notícias.

— Cantávamos ali quando nem havia cachê. Agora, não nos chamam mais. Quando convidam, é para tocar às 22h, hora em que ainda estão arrumando engradados de cerveja — reclama Monarco.

Outro problema é o valor do cachê que geralmente é oferecido ao grupo.

— Pagam cem mil reais a grupos com prazo de validade e oferecem dez mil à Velha Guarda. E tem sempre o mais duro, que vai dizer: “Antes pingar que secar”. Mas somos sentinelas do samba. Cantamos músicas centenárias que permanecem na boca do povo. Nosso samba não tem agrotóxico, é puro e não pré-fabricado — afirma. — Outro dia, um cara disse que tinha dez sambas para mostrar ao Zeca Pagodinho. Dez? Poxa, levo um ano para fazer uma música...

Não que para a velha guarda de outras escolas a vida seja céu de brigadeiro. Nem que viver de biscate, de profissões paralelas ou não ter o reconhecimento merecido seja novidade para sambistas dessa geração. Nelson Cavaquinho e Cartola (que lavou carros na velhice) viveram períodos de ostracismo. Por muito tempo, Monarco se dividiu entre o microfone e a faca de peixeiro.

O que chama atenção é que, em pleno 2020, quando há uma maior consciência sobre a importância da preservação da memória e da cultura brasileira, a Velha Guarda da Portela vá fazer 50 anos sem que haja uma grande comoção.

Aliás, foi por causa de uma negativa do patrão que Monarco não pôde gravar a voz em seu samba que batiza o disco “Portela, passado de glória” (1970). Idealizado por Paulinho da Viola, o LP é considerado a pedra fundamental de fundação da Velha Guarda mais antiga do Brasil. Em 1964, Paulinho, então com 22 anos, frequentava a Portelinha, em Oswaldo Cruz. Conversando com compositores antigos, como Boaventura dos Santos, percebeu a importância de registrar sambas que poderiam morrer ali, escritos num papel de pão.

— Pedi ao Boaventura que reunisse os mais velhos, que quase não iam mais à quadra, mas se encontravam aos domingos para lembrar sambas e histórias — conta Paulinho. — Eles registraram vários numa fita cassete. Minha preocupação era despretensiosa, com a história. Não queria que aqueles sambas se perdessem.

O sucesso do LP fez com que outras escolas criassem suas velhas guardas. O álbum também abriu portas para que se apresentassem em shows pelo Brasil (“era fila de dobrar a esquina; a Vicentina, única pastora na época, sambava miudinho e o teatro vinha abaixo”, lembra Monarco). Surgia aí a Velha Guarda da Portela Show.

Chama acesa

Quase 30 anos depois, Marisa Monte resgatou outras canções no álbum “Tudo azul” (1999). O mergulho da cantora no baú da Velha Guarda da Portela foi registrado no filme “O mistério do samba”, de Carolina Jabor e Lula Buarque. De lá para cá, nomes da nova geração da MPB mantiveram a chama do coletivo acesa. Roberta Sá é uma delas.

— Sempre que me apresento com eles é mágico. É impressionante a personalidade do timbre coletivo que conseguiram formar. A gente reconhece de cara — diz Roberta.

As pastorinhas

O respeito aos mais velhos é algo muito sério no samba. E um silêncio gentil toma conta da quadra toda vez que o mestre Monarco, arquivo vivo da cultura portelense (“a gente não encontra peças de reposição como esta”, diz o cavaquinista Serginho Procópio), começa a contar “causos”.

— Naquele tempo (50 anos atrás ), quase não havia mulher cantando com a gente. Os pais não deixavam vir, achavam que não era uma coisa séria. — lembra ele, que tinha oito anos quando se juntou aos guardiões da águia azul e branco. — Dizem que o Paulo da Portela pegava as moças em casa e depois devolvia, era responsabilidade dele.

Integrada à Velha Guarda por Manacéa em 1980, Tia Surica é uma das pastoras que hoje dá continuidade a uma tradição que começou com as pioneiras Tia Vicentina, Tia Lurdes e Tia Iara e seguiu com Tia Doca, Tia Eunice, entre outras.

— As vozes femininas dão um brilho danado. Uma andorinha só não faz verão, né, minha filha? — brinca Surica.

Abolição do cativeiro

Monarco reconhece que hoje o gênero sofre menos preconceito do que antigamente, quando sambista era chamado de vagabundo. Mas, em sua opinião, muitos de seus artistas ainda permanecem à margem.

— Como dizia Carlos Cachaça, houve a abolição do cativeiro, mas o negro continua marginalizado — afirma. — Candeia morreu lutando por essa causa. Nunca fazem pelo samba o que o samba merece. Veja a velha guarda, temos cinco décadas de história. Precisamos fazer shows. Respeito, 50 anos não são 50 dias.

Roberta Sá também acha que existem resquícios do preconceito de outrora.

— Tirando os sambistas que são estrelas nacionais, o cara que é da comunidade e tem outro trabalho porque não consegue se sustentar com o samba ainda não é tratado como o devido respeito — analisa a cantora. — É questão que tem uma raiz profunda, no racismo que está na origem da nossa sociedade, que também tem a ver com religião. O samba começou nos terreiros.

É justamente o samba de terreiro que não se ouve mais nas rádios, principal queixa da pastora Áurea Maria.

— Você liga na FM e o samba que toca não é o nosso, genuíno. O Brasil não valoriza, não reconhece sua importância. O samba ainda não ocupou o lugar que é seu por direito.