Cultura

Vinicius de Moraes: um poeta convertido à música popular

Para ele, as canções eram uma extensão de sua poesia, prolongamentos de tudo que vivera

RIO - Vinicius de Moraes não se conformava com a resistência de amigos poetas à sua conversão à música popular. Pouco importava que essa resistência fosse apenas um modo de os outros manifestarem admiração pela poesia escrita que ia ficando em segundo plano. O que o incomodava era não reconhecerem que a obra do letrista era uma extensão da obra do poeta. Ambas, para ele, importantes, uma e outra prolongamentos de tudo o que vivera, os amores, as dores, tudo. No entanto, amigos dele próprio pareciam não levar em conta que estava justamente naquela conversão — a corajosa passagem de uma arte para outra — um dos encantos do seu legado poético-musical.

Porque Vinicius de Moraes, o poeta e o letrista, foram realmente dois. Poucos dos que se dedicaram às duas formas — e nenhum como ele — exerceram tão sabiamente as diferenças. A palavra do poeta é livre. A do letrista, escrava da música. Os versos do poeta seguem por caminhos só seus, pessoais, exclusivos. Os do letrista serão tão bons quanto realizarem com a música do parceiro um casamento perfeito.

Significa que o que o letrista tem a dizer tem de ser dito rigorosamente dentro dos limites impostos pela música. Numa letra tecnicamente irretocável, a pontuação da frase literária deve obedecer à sugerida pela frase melódica e, imprescindível, a pontuação de cada palavra deve coincidir com a de cada nota musical. Um exemplo, em letra de Vinicius para música de Tom Jobim: “A felicidade do pobre é como a gota/ De orvalho numa pétala de flor/ Brilha tranquila/ Depois, de leve, oscila/ E cai como uma lágrima de amor.”

Já compararam Vinicius a um poeta-letrista nascido 20 anos antes dele: Orestes Barbosa. Pareciam-se, de fato, em muita coisa: cariocas, boêmios, apaixonados, personagens fascinantes, fazedores de cabeça e, naturalmente, poetas convertidos à música popular. Só que Orestes jamais deixou de ser poeta. Suas melhores canções (entre elas, sua obra-prima, “Chão de estrelas”) eram sextilhas rigorosamente metrificadas que ele passava aos parceiros para musicar, ao passo que Vinicius, o letrista, ao mesmo tempo em que trocava as preocupações metafísicas de sua poesia por temáticas mais de acordo com a música popular (amor, dor, paz, felicidade, fossa, saudade, quase sempre em torno da mulher), preferia acrescentar seus versos, ou melhor, sua letra, a música já feita, inclusive as suas próprias.

Carlos Drummond de Andrade, dos poucos amigos poetas que jamais censuraram o letrista, propôs que se entregasse ao tempo a missão de julgar estética, e não emocionalmente, o poeta Vinicius de Moraes. O letrista teve mais sorte: ainda em vida foi reconhecido como um dos que tornaram a canção brasileira mais rica.