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Cultura Música

Zé Kéti completa 100 anos como a voz do morro e muito mais

Autor de clássicos do samba ganha shows no CCBB que celebram seu centenário e ajudam a dimensionar seu papel mais amplo na cultura brasileira
O cantor Zé Kéti (1921-1999) Foto: Marco Aurelio Olimpio / Divulgação
O cantor Zé Kéti (1921-1999) Foto: Marco Aurelio Olimpio / Divulgação

RIO - Pergunte sobre Zé Kéti a quem é do samba: a resposta pode se estender por horas. Natural do Rio de Janeiro, o cantor e compositor, que morreu em 1999, deixou uma obra que serviu a intérpretes do quilate de Luiz Melodia , Nara Leão , Jair Rodrigues, Jamelão, Paulinho da Viola e Elza Soares . E foi um dos grandes personagens da cultura brasileira do século XX, ao ajudar a aproximar morro e asfalto no musical “Opinião” (1964, de Augusto Boal), e participar de obras fundamentais do cinema nacional como “Rio 40 graus”, de Nelson Pereira dos Santos . No filme, de 1955, Kéti fez de tudo um pouco —foi ator, forneceu músicas para a trilha e cozinhou para a equipe de filmagem.

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— O Zé Kéti é um compositor brasileiro que merecia ser mais observado, porque tem uma obra popular vastíssima e sucessos impressionantes, como “Mascarada”, “Diz que fui por aí”, “Nega Dina”... e, é claro, “A voz do morro” (dos versos “eu sou o samba / a voz do morro sou eu mesmo, sim, senhor), que é até hoje o grande número final do shows de samba — diz o fundador do Samba do Trabalhador, Moacyr Luz.

O músico é uma das estrelas da série de shows “100 anos da voz do morro”, que acontece de quinta a domingo no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio para celebrar o centenário do artista (que se completa em 16 de setembro).

Segundo Geisa Ketti, filha, guardiã e inventariante da obra de Zé Kéti, a iniciativa da produtora Stella Lima, encampada pelo CCBB, será uma das poucas homenagens que o pai deve receber neste ano do centenário.

— Em 2020, iniciamos um documentário com o meu irmão José Carlos, mas ele veio a falecer em maio, vítima de Covid, e tudo parou — lamenta. — No final do ano nós começamos a nos mobilizar com alguns amigos para iniciar a construção de um site que provavelmente vamos conseguir lançar em fevereiro. Estamos à cata de depoimentos e de fotos. E chamamos amigos do Brasil todo, de Portugal e da Argentina para fazerem rodas de samba em homenagem a Zé Kéti.

Na obscuridade

Apesar de ter feito muito sucesso nos anos 1950 e 60 (em 1967, ele lançou um dos grandes clássicos carnavalescos, a marcha-rancho “Máscara negra”), Zé Kéti passou as décadas seguintes na obscuridade. Em 1996, o cantor Zé Renato surpreendeu a todos ao lançar o CD “Natural do Rio de Janeiro”, só de composições do sambista.

— As pessoas conheciam as músicas dele, mas não sabiam que eram dele. De uma certa forma, o disco apresentou o Zé Kéti a uma geração — acredita Zé Renato, que amanhã apresenta na série do CCBB, com o pianista Cristóvão Bastos, o show “Zé Kéti e o cinema”. — Tem esse lado de ele ser um cronista, de trazer para as músicas dele as pessoas com quem convivia, mas ele compunha melodias com desenhos cheios de surpresas, que desembocam num lugar maravilhoso. Zé Kéti era muito sofisticado.

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Para o diretor Cacá Diegues, com quem Zé trabalhou em “A grande cidade” (1966), ele foi “um dos fundadores do Cinema Novo”.

— É dele o hino inaugural, “A voz do morro”, uma canção que iluminava as imagens de “Rio 40 graus”, a primeira obra e guia do movimento que revelava o Brasil no cinema, como ele era de fato. E depois, ele ainda participou de “Rio Zona Norte”, “O desafio” e “A grande cidade”, filmes decisivos no início do Cinema Novo. Não satisfeito, Zé Kéti foi adotado por Nara Leão ( no “Opinião” ) e acabou adotando-a como instrumento do canto popular que se impôs à bossa nova.

Zé Kéti (à direita), com Maria Bethânia e João do Vale no espetáculo "Opinião" Foto: Arquivo
Zé Kéti (à direita), com Maria Bethânia e João do Vale no espetáculo "Opinião" Foto: Arquivo

Dos pioneiros da bossa, o cantor e compositor Carlos Lyra tornou-se até parceiro de Zé Kéti, nos tempos do “Opinião”, no “Samba da Legalidade”, que os dois só gravariam em 1994.

— Zé era uma figura ímpar. Fomos fazer um show na Unicamp a convite do ( dramaturgo ) Chico de Assis e ele me apareceu sem violonista, pois sabia que eu faria show e que sabia todas as suas músicas— recorda-se Lyra.

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Da geração de sambistas que se projetava na Lapa no começo dos anos 2000, João Cavalcanti (que abre hoje a série do CCBB hoje, em show com seu trio e a cantora Fabiana Cozza) observa que Zé Kéti “logrou fazer com que suas crônicas alcançassem ouvidos que eram alheios a ele”:

—Eu cansei de ver, na ocupação cultural da Lapa, a galera cantando “Acender as velas” ( que fala do doutor que “chegou tarde demais porque no morro não tem automóvel pra subir” ). Certamente essa galera, na qual me incluo, não passou por aquilo que a letra diz. Mas a gente estava levando adiante uma voz que tinha sido silenciada reiteradamente. As crônicas do Zé Kéti, infelizmente, continuam muito atuais.