Cultura

Zeca Baleiro inspira peça de Clarice Niskier, atriz que está há 14 anos com 'A alma imoral'

'A esperança na caixa de chicletes Ping Pong' costura letras do maranhense e trechos de outros autores numa reflexão sobre a atual situação do Brasil
A atriz Clarice Niskier no espetáculo "A esperança na caixa de chicletes Ping Pong", inspirado na obra poético-musical de Zeca Baleiro Foto: Zé Rendeiro / Divulgação
A atriz Clarice Niskier no espetáculo "A esperança na caixa de chicletes Ping Pong", inspirado na obra poético-musical de Zeca Baleiro Foto: Zé Rendeiro / Divulgação

RIO - "Eu escuto as músicas do Zeca basicamente todos os dias, há três anos. E eu não canso", diz a atriz Clarice Niskier . O Zeca em quesrão é o cantor e compositor maranhense Zeca Baleiro , e o resultado desse fascínio é “A esperança na caixa de chicletes Ping Pong” , nova peça da atriz, que há 14 anos roda o país com o monólogo “A alma imoral”, adaptado do livro de Nilton Bonder.

Com estreia marcada para o próximo dia 6, no Teatro do Leblon, “A esperança...” traz Clarice novamente sozinha no palco, agora encenando um texto escrito por ela a partir 59 obras do compositor e de trechos de outros autores. Ao costurar tudo isso, ela reflete sobre a atual situação do Brasil e apresenta os motivos de preferir ficar no país a deixá-lo.

Tributo: O olhar de Zeca Baleiro sobre os muitos Zés Ramalhos

A ideia do projeto surgiu há 20 anos, quando a atriz ouviu “Samba do approach” influenciada pela irmã, que havia escolhido a música para uma audição de canto.

— Fiquei encantada com a letra e descobri que era do Zeca — relembra. — As letras dele falam de mim atualmente, do meu pensamento. É uma coisa bem-humorada e profunda.

"Situação degradante"

Só que a peça tomou forma apenas em 2016, quando a atriz encontrou com Zeca num evento na Amazônia e lhe revelou a vontade de fazer uma peça com as letras dele.

— Eu sabia que ele era uma pessoa com muitas músicas que eu não conhecia, mas o fundo era muito mais embaixo. Tive que pegar um caderno e separá-las em categorias, como solidão, medo, amor — conta a atriz, rindo. — Passamos a nos encontrar a cada três meses, quando eu mostrava o que tinha escrito. Ele foi entendendo meu trabalho e dizia que eu deveria, por exemplo, parar de escutar músicas românticas e ir por outro caminho.

No espetáculo, que tem fragmentos de textos de Sérgio Buarque de Holanda , Ferreira Gullar e Oswald de Andrade , entre outros, Clarice tenta expor o que chama de “situação humanamente muito degradante” que o país vive:

— Acho que quando a sociedade se divide ideologicamente dessa maneira fica um discurso sem pé nem cabeça. É ódio em ambas as partes. Eu não quero que você concorde comigo, mas que me compreenda. Tem um historiador judeu que diz “Eu não quero concordar com o holocausto, mas como historiador eu tenho o dever de compreender”. Eu, como artista, tenho o dever de compreender o outro e depois discordar.

"Um troço sem fim"

Para Zeca, há também uma outra importante discussão na apresentação, sobre o caráter do brasileiro. Segundo ele, quem assistir ao espetáculo vai sair querendo ir a um bar para discutir o tema, que, segundo ele, é “um troço sem fim”.

— Acho que o grande barato é que a Clarice está usando tudo isso, inclusive me usando ( risos ), para uma discussão muito mais profunda — diz. — Já houve o mito do brasileiro cordial, agora a gente vê pesquisas comprovando que o brasileiro é um dos povos mais violentos do mundo. Quer dizer, que povo complexo é esse? Através da arte, ela está trazendo à luz essa discussão — opina Zeca.

O espetáculo tem supervisão de direção de Amir Haddad — parceiro de anos da atriz em trabalhos como o próprio “A alma imoral”.

— Eu trabalho com a Clarice praticamente desde que ela nasceu. Ela pulou do berço para o teatro... e fui eu que a segurei — brinca Amir. — Eu não aguento trabalhar com ator que não tem uma primeira palavra. E isso a Clarice sempre teve. Eu só digo o que achei legal ou não.

Em cena, além de discorrer sobre o Brasil, Clarice, mostra por que, apesar de ter uma visão crítica de tudo o que vem acontecendo (como os ataques ao setor cultural), não pensa em ir embora daqui.

— Pode ser uma mentira que inventei para mim mesma, mas acho que fico porque eu gosto muito de falar, e de falar nesta língua. E eu jamais deixaria de fazer teatro, só que eu não me vejo fazendo teatro em Paris, falando francês. Não me vejo sendo feliz. Eu construí um sonho a que sou apegada. Eu tenho o sonho de ser atriz no Brasil.

“Acho que fico porque eu gosto muito de falar, e de falar nesta língua. E eu jamais deixaria de fazer teatro, só que eu não me vejo fazendo teatro em Paris, falando francês”

Clarice Niskier
Atriz

Para quem está se perguntando de onde vem o título, com sua referência ao chiclete Ping Pong, que fez a alegria de gerações de crianças, Clarice explica: quando era criança, ela transformou uma caixa vazia do doce em “casinha” para uma esperança com que costumava brincar. O bichinho vivia indo embora. Mas acabava sempre voltando.

Já o público, ela imagina, deverá ir embora com uma questão martelando a cabeça.

— Acho que as pessoas vão sair daqui se perguntando: “Qual é a nossa identidade?” — aposta.