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Economia Tecnologia

Concentração de mercado e influência política: entenda por que os EUA querem limitar o domínio das ‘big techs’

Congresso americano aprovou um relatório que abre caminho para novas leis contra práticas monopolistas de gigantes como Google, Facebook e Amazon
Amazon, Apple, Facebook e Google: alvos no Congresso americano Foto: Reuters
Amazon, Apple, Facebook e Google: alvos no Congresso americano Foto: Reuters

RIO - O Congresso americano deu na quinta-feira mais um passo no cerco às gigantes globais de tecnologia. O Comitê de Justiça da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos aprovou um relatório que acusa as big techs de comprarem ou aniquilarem empresas de menor porte.

O relatório de mais de 400 páginas aprovado por 24 votos a 17 com apoio de republicanos e democratas é um avanço em relação ao primeiro levantamento feito pelo Congresso sobre as big techs , divulgado em outubro. No alvo estão Google, Amazon, Apple e Facebook.

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O texto já propunha mudanças significativas na legislação antitruste para limitar o domínio de algumas dessas empresas em seus segmentos. Também trazia exemplos de como elas abusavam de seu poder de mercado, inibindo a concorrência.

Mark Zuckerberg defendendo as aquisições de WhatsApp e Instagram no Congresso dos EUA Foto: Erin Scott / REUTERS
Mark Zuckerberg defendendo as aquisições de WhatsApp e Instagram no Congresso dos EUA Foto: Erin Scott / REUTERS

Para analistas ouvidos pelo GLOBO, o relatório mostra que há uma disposição crescente das autoridades americanas para impor limites à atuação monopolista das big techs . E as razões não são só econômicas.

A influência política que as redes sociais exercem na sociedade também incomoda. Em comum, especialistas concordam que uma eventual aprovação da legislação nos EUA pode ter impacto para outras partes do mundo.

Nível de controle ainda incerto

Para o professor do Instituto de Economia da UFRJ Luiz Carlos Prado, a aprovação do relatório é fruto de um momento no qual as big techs já vinham sob escrutínio público. Dessa forma, a discussão deve se encaminhar para algum tipo de regulação das atividades dessas empresas, mas resta saber qual natureza e abrangência desse controle.

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Para o economista, ainda há um longo caminho pela frente, pois o relatório não determina o que será feito, mas serve como base para futuras recomendações.


Larry Page e Sergey Brin, cofundadores do Google
Foto: John Cogill / Bloomberg News
Larry Page e Sergey Brin, cofundadores do Google Foto: John Cogill / Bloomberg News

— Ainda está longe de ser conclusivo, pois há muito debate a ser feito e essas empresas possuem influência no Congresso americano. A regulação é feita pelas autoridades americanas, mas essas empresas atuam internacionalmente. Então, precisa se discutir como essa regulação será feita. Que existirá algum tipo de regulação, eu não tenho dúvida, a questão é como será feita — diz.

Prado destaca que o relatório aprovado foca em questões de concorrência, com destaque para evitar a prática de truste, mas há outros pontos como uso de dados e propagação de desinformação que também vêm à tona quando se discute o tema:

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— O poder político e financeiro dessas empresas é tão grande que os Estados precisam impor limites, tanto no que se refere à questão concorrencial quanto em outras atividades.

Logotipo da Apple em fachada da loja da companhia em Paris Foto: Gonzalo Fuentes/15-7-2020 / REUTERS
Logotipo da Apple em fachada da loja da companhia em Paris Foto: Gonzalo Fuentes/15-7-2020 / REUTERS

O pesquisador do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da FGV, Leonardo Neves, também destaca que o poder de lobby dessas empresas pode diluir algumas propostas em futuros projetos de lei.

Ele concorda que o impacto que essas empresas podem provocar na economia e na política favorece as tentativas de regulação:

— O impacto que essas empresas têm tido na vida política gera esse movimento de regulação. A comunidade política está preocupada com a liberdade que elas têm.

‘Setor pressupõe poucos concorrentes’

Para Neves, as medidas antitruste podem gerar impactos a longo prazo, no sentido de estimularem maior concorrência no futuro. O pesquisador lembra que a prática de crescimento por aquisições de outras empresas é comum no setor de tecnologia, já que muitas dessas grandes empresas têm uma natureza monopolista em suas estratégias.

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— Poucas pessoas teriam tanto interesse de participar do Facebook se tivessem tantas outras redes sociais do tipo. Esse setor pressupõe que terão poucos concorrentes. Essas medidas, se aprovadas, colocam obstáculos na vida dessas empresas. Não acredito que gere grandes impactos a curto prazo. Mas no médio, vão surgir outras companhias com ideias inovadoras que não vão ser compradas e podem tentar rivalizar no futuro

Logo da Microsoft em Los Angeles, na California Foto: REUTERS/Lucy Nicholson
Logo da Microsoft em Los Angeles, na California Foto: REUTERS/Lucy Nicholson

O coordenador da área de direito e tecnologia do ITS, Christian Perrone, diz que tentativas de regulação das gigantes de tecnologia não são uma coisa nova. Ele lembra do uso de medidas antitrustes para limitar a Microsoft na década de 1990.

Também destaca que o presidente Joe Biden nomeou pessoas favoráveis à regulação para cargos no seu governo.

— Esse é mais um movimento nesse contexto, um ponto de partida para avançar na discussão do poder que essas empresas adquiriram. Ainda tem muita água para correr, até para averiguar se os caminhos indicados no relatório são os melhores, como a sociedade civil vai reagir a isso, quais serão os argumentos das companhias.

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O pêndulo da regulação

O pesquisador define a discussão sobre a regulação no setor de tecnologia como um pêndulo. Foi da euforia do início do século com as inovações às preocupações levantadas a partir da metade da década passada. Perrone também observa que há outros pontos a serem debatidos sobre as big techs , além da concorrência:

Jeff Bezos, fundador da Amazon, deixa a empresa oficialmente em julho Foto: Mike Segar / REUTERS
Jeff Bezos, fundador da Amazon, deixa a empresa oficialmente em julho Foto: Mike Segar / REUTERS

— Começamos a entender como essas empresas tem uma importância desproporcional dentro do cenário global. E precisamos avaliar quais impactos uma maior regulação terá. Ainda temos um espaço para buscar meios para avaliar o desafio que não só as big techs como as novas tecnologias nos impõe. Como vamos lidar com desinformação, riscos à privacidade e não somente o tamanho da empresa.

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Brasil assiste

Com relação ao Brasil, Perrone ressalta que o país ainda é mero espectador do debate, já que funciona mais como um consumidor de tecnologia do que propriamente um criador de ferramentas:

— Estamos um pouco à margem dessa discussão. Sofremos mais os impactos, pois somos mais um consumidor de tecnologia do que um produtor. Como um país do Sul global, temos que olhar como as regulações dessas empresas podem nos afetar, quais serão os impactos para acessos a serviços tecnológicos.