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Economia

De calçados a montadoras, setores negociam com governo propostas próprias para destravar crédito

Entre as alternativas estão maior participação de bancos públicos na oferta de empréstimos, novas garantias e incentivos tributários
Fábrica de automóveis no estado de São Paulo Foto: Divulgação
Fábrica de automóveis no estado de São Paulo Foto: Divulgação

SÃO PAULO - Com a dificuldade de empresas obterem empréstimos nos grandes bancos e o fracasso da linha de crédito criada pela União para pequenas e médias afetadas pelas medidas de contenção do coronavírus, diferentes setores da economia resolveram dar ideias ao governo. Associações empresariais começaram a levar propostas próprias para destravar os financiamentos que poderiam amenizar o impacto da crise sobre negócios e empregos.

Entre as alternativas na mesa estão a cobrança de maior participação dos bancos públicos na oferta de empréstimos, oferecimento de garantias próprias às instituições financeiras e incentivos tributários para estimular vendas.

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Especialistas ouvidos pelo GLOBO avaliam que é preciso remover rapidamente obstáculos para que os bancos liberem o crédito. Na linha de financiamento da folha de pagamentos, por exemplo, dos R$ 40 bilhões disponíveis em recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), apenas R$ 1,7 bilhão foram utilizados até agora.

Sem crédito numa crise das proporções atuais, a recuperação da economia será postergada, alerta Carlos Daltozo, analista da consultoria Eleven Financial, especializada no setor financeiro:

— Crédito é a primeira válvula de escape para recuperação da economia. Sem empréstimo, a retomada é adiada.

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O diretor da Confederação Nacional da Indústria (CNI) Carlos Abijaodi conta que a entidade já levou mais de 60 propostas ao governo para o setor industrial desde o início da crise, entre elas algumas para destravar o crédito. Ele avalia que os recursos existem nos bancos, mas não serão escoados para as empresas que precisam de capital se não houver garantias do Tesouro:

— É uma situação de guerra. Então, é preciso utilizar instrumentos como o Fundo Garantidor para Investimentos (FGI), com garantia do Tesouro, como está acontecendo nos países desenvolvidos, para não sairmos dessa crise com milhares de empresas falidas.

O setor de calçados pede mais rapidez no acesso ao FGI, do BNDES, que vai viabilizar garantias a financiamentos para empresas, especialmente as pequenas e médias. Esse fundo já existe e terá aporte de R$ 20 bilhões em recursos do Tesouro, mas isso depende de uma medida provisória do governo, em fase final de elaboração.

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Depois, será preciso esperar o aporte dos recursos para só então operacionalizar os empréstimos. Serão repassados ao BNDES quatro parcelas de R$ 5 bilhões, mas, se a procura for grande, mais recursos podem ser aportados, diz fonte que acompanha as conversas entre BNDES e governo.

A expectativa é que cada R$ 1 dado como garantia pelo FGI possa alavancar R$ 5 em crédito para empresas. Segundo informações do BNDES, da linha emergencial de R$ 5 bilhões já liberada para pequenas e médias empresas com faturamento anual de até R$ 300 milhões, R$ 3,1 bilhões foram tomados por 190,7 mil companhias.

A fábrica da Dimona, em Duque de Caxias. A fábrica da Dimona, em Duque de Caxias. O cenário para a indústria sofreu forte piora, com uma queda estimada agora da produção de 5,35% em 2020, diz BC Foto: Divulgação
A fábrica da Dimona, em Duque de Caxias. A fábrica da Dimona, em Duque de Caxias. O cenário para a indústria sofreu forte piora, com uma queda estimada agora da produção de 5,35% em 2020, diz BC Foto: Divulgação

— Esse processo do FGI está muito moroso. O setor precisa de uma espécie de cheque especial, com juros mais baixos, mas isso não está acontecendo — queixa-se Haroldo Ferreira, da Abicalçados.

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A indústria têxtil finaliza proposta que deve ser entregue em breve ao governo pedindo maior participação dos bancos públicos na oferta de crédito. Segundo a Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção (Abit), com fábricas paradas e mais de 150 mil pontos do varejo fechados, o setor precisa de R$ 20 bilhões em capital de giro. Pequenas empresas do segmento, como confecções, não estão conseguindo acesso a empréstimos em grandes bancos.

— Temos uma proposta que será entregue ao governo sugerindo que bancos públicos como BNDES, Banco do Nordeste, Caixa e até Banco do Brasil façam a chamada política anticíclica na oferta de crédito. Os bancos privados não vão fazer esse papel — diz Fernando Pimentel, presidente da Abit.

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Com queda de 99% na produção em abril, o setor automobilístico calcula que precisa de R$ 40 bilhões a R$ 50 bilhões em linhas de capital de giro, disse o presidente da Anfavea, Luiz Carlos Moraes.

A proposta das montadoras levada ao governo é que créditos tributários que as montadoras têm a receber sejam convertidos em garantias aos bancos em empréstimos. A indústria de automóveis estima que tem R$ 25 bilhões em créditos relacionados a impostos a receber de estados e da União.

Moraes disse que essa discussão já está em curso com o Ministério da Economia e o BNDES, mas o martelo anda não foi batido:

— Os governos não podem liberar estes créditos, então estamos sendo criativos e propondo que eles possam ser usados como garantias a empréstimos bancários. Não queremos subsídio nem recursos públicos, queremos usar recursos privados e oferecer esses créditos como garantias.

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Crédito Foto: Editoria de Arte
Crédito Foto: Editoria de Arte

Na construção civil, que deve ter uma retração de 11% este ano, as propostas levadas ao governo são no sentido de estimular as vendas. Entre as ideias estão redução de juros para imóveis do Minha Casa Minha Vida e incentivos tributários. Para o consumidor de renda média e alta, por exemplo, a proposta é que juros pagos em financiamentos imobiliários possam ser deduzidos do Imposto de Renda. Para isso, seria estabelecido um teto de dedução por um período de tempo determinado.

— Seria temporário, mas é um estímulo para as vendas — diz Luiz França, presidente da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), que representa as construtoras.

Impacto da pandemia

Pesquisa da CNI mostra que sete em cada dez empresas relatam queda no faturamento entre os cinco principais impactos da pandemia. A inadimplência e o cancelamento de pedidos foram apontados por 45% e 44% dos entrevistados, respectivamente.

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O segundo maior impacto da crise nos negócios foi a queda na produção. Das 1.740 empresas pesquisadas entre 1º e 14 de abril, 76% relataram que reduziram ou paralisaram a produção. De acordo com os dados, 59% dos empresários estão com dificuldades para cumprir com os pagamentos correntes e 55% relataram que o acesso a capital de giro ficou mais difícil. Entre as medidas tomadas em relação à mão de obra, 15% das empresas demitiram.

CNI projeta que o PIB industrial vai cair 3,9% em 2020 Foto: Yasuyoshi Chiba / Agência O Globo
CNI projeta que o PIB industrial vai cair 3,9% em 2020 Foto: Yasuyoshi Chiba / Agência O Globo

Para Ricardo Rocha, professor de Finanças do Insper, diante do maior risco de inadimplência, é preciso encontrar alternativas para financiar pequenas empresas, já que os bancos relutam em emprestar. Uma opção seria criar fundos de recebíveis, com as próprias instituições financeiras, que comprariam direitos de créditos futuros, como os de fornecedores dessas empresas.

Já Carlos Daltozo, da Eleven Financial, avalia que é preciso oferecer linhas de crédito subsidiadas, via BNDES, para pequenos e médios negócios. Para ele, o cenário atual de emergência justifica este tipo de política pública para preservar empresas e empregos.

A equipe econômica tem evitado criar incentivos para setores específicos na crise do coronavírus. O secretário especial de Produtividade, Emprego e Competitividade, Carlos da Costa, diz que o governo trabalha com um “tratamento transversal”. Desde o início da pandemia, no entanto, o Ministério da Economia já precisou editar medidas para os setores aéreo e sucroalcooleiro.

Procurada, a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) não comentou se estão em estudo novas linhas de crédito com garantias do governo, mas informou que estão trabalhando para suprir a demanda por crédito no país. Sobre a linha para folha de pagamentos, a entidade informou em nota que foram formalizados mais de 80 mil contratos, beneficiando cerca de 800 mil trabalhadores formais. ( Colaborou Geralda Doca )