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Economia

‘TI nas empresas é questão estratégica, e visão deve vir da liderança’, diz professor da Unicamp

Para Ruy Quadros, pandemia acelerou fortemente a transformação digital nas empresas brasileiras
Ruy Quadros: no caso da tecnologia, a liderança corporativa tem o papel fundamental em definir prioridades, estabelecer agendas, valores Foto: Divulgação
Ruy Quadros: no caso da tecnologia, a liderança corporativa tem o papel fundamental em definir prioridades, estabelecer agendas, valores Foto: Divulgação

RIO - O Brasil é bom em adotar tecnologias, e elas se difundem rápido por aqui. Não por acaso elas estão de olho em fazer IPOs na Bolsa eletrônica Nasdaq. Só no setor do varejo, os investimentos em transformação digital cresceram 87%, segundo dados da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC).

E a pandemia ajudou a turbinar essa transformação tech nas empresas, avalia Ruy Quadros, professor titular do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp.

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Ele analisa, nesta entrevista, como anda essa seara no país, mas alerta que é necessária a volta do crescimento da economia para que a tendência amadureça: "O crescimento é amigo da inovação", diz Quadros, que recentemente falou sobre o tema em evento da Firjan.

Para o especialista, a questão da tecnologia nas empresas é estratégica e a visão sobre a adoção digital deve ver da liderança, no mais alto nível.

Como a pandemia impactou a transformação digital nas empresas?

Algumas já vinham se preparando, como a Natura, que há oito anos vem identificado que o futuro das vendas passaria pela internet e já apostava num processo de digitalização das chamadas consultoras, a sua força de venda. O que a pandemia fez foi acelerar o processo brutalmente.

Por outro lado, você tem empresas de serviços, como as fintechs, que criaram novos modelos de negócio. O Magazine Luiza (Magalu) também já vinha se digitalizando,  mas acelerou e criou negócios novos, como uma plataforma de marketplace. Essas empresas tiveram mais facilidade. Mas a indústria ainda não estava ainda bem preparada para esse processo de digitalização.

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Como equilibrar processos da empresa e adoção de tecnologia?

Depende da ambição digital da empresa. Você pode ter uma visão de aprofundar seus processos e ir mais longe, criando negócios novos, ou de digitalizar tudo ou parte do que você já faz.

E não se começa com uma mudança muito grande no início, é um processo de aprendizado, em todo tipo de tecnologia.  À medida que a empresa vai percebendo que a transformação funcionou bem, e conseguiu criar novos negócios, vai aprofundando a estrutura, o conhecimento e assim ampliando a ambição digital.

No caso do Magalu teve todo um processo de aprendizado de vendas digitais. Primeiro ele digitalizou seu próprio negócio, suas vendas, depois passou a usar essa base digital para se tornar um canal para outros fornecedores, virando uma plataforma.

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Essa necessidade de transformação não mexe com o conceito de inovação?

O conceito de inovação vai além da ideia de inovar produtos e processos; ele pode atingir todas as funções da empresa, no marketing, na comunicação, na logística, nas compras, na pesquisa e desenvolvimento, nas relações com investidores e assim por diante.

Modelo de home office funcionará em conjunto com o presencial no futuro Foto: Pixabay
Modelo de home office funcionará em conjunto com o presencial no futuro Foto: Pixabay

O 5G e a internet das coisas vão aguçar a tendência?

Estamos entrando num novo patamar com os recursos de computação em nuvem, com a possibilidade de integrar mais pessoas e dispositivos com a internet das coisas, e ainda mais com a conectividade proporcionada pelo 5G começando a chegar. Isso gera uma enorme produção de dados que permite extrair conhecimento com ferramentas de análise e aprendizado, como o próprio machine learning e a inteligência artificial.

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Quem deve ser o ponta de lança na transformação digital?

Ela precisa fortemente de uma visão estratégia da liderança da empresa, no mais alto nível. Isso não é uma atribuição apenas da área de TI, é uma questão estratégica fundamental. Até porque não há varinha de condão, essa transformação não se dará do dia para a noite. Por isso a liderança tem o papel fundamental em definir prioridades, estabelecer agendas, valores  e visões para o futuro imediato.

Qual a maior dificuldade das empresas?

É algo parecido com a questão da sustentabilidade (aliás, as duas coisas andam juntas). É uma questão de mentalidade. Vamos pegar o caso da indústria:  ela precisa entender que seu desafio para o futuro é agregar serviços, é pensar em negócios que agregam serviços. Não pode mais ter aquela visão de que "eu faço produto, eu faço commodity, eu planejo, desenvolvo, produzo e vendo", só.

Um exemplo de reinvenção aí é a purificadora de água da Brastemp, que passou a vender o serviço de purificação, não só o produto. Assim como a Fiat agora tem o carro por assinatura, coisas que as seguradoras já vêm fazendo também.

É claro que você vai continuar tendo a produção física, mas o conceito da fronteira entre indústria  e serviço cada vez mais se dilui. Hoje, o produto vale o que ele entrega de serviço.

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Do lado do trabalho, com home office, como fica a atitude das empresas? No futuro teremos uma jornada de trabalho híbrida?

A tendência é essa, de uma jornada híbrida, a depender da visão de autonomia do funcionário que o empregador tem. Mas, se por um lado haverá home office, a presença física, o contato direto nas equipes e entre elas é um fator fundamental no dia a dia.

Você perde muito da comunicação informal com a distância do local de trabalho. O home office não consegue substituir o aleatório dessa comunicação, o corredor, o cafezinho, que tem um papel essencial. Afinal, você nunca sabe quem vai encontrar nesses momentos e que assunto vai aparecer, o que pode ser benéfico.

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Como será o futuro digital das empresas?

Destaco os avanços no setor financeiro, com os novos serviços das fintechs, mais elaborados (e o Banco Central tem um papel fundamental aí, pois temos uma legislação avançada no setor) e também o setor comercial, com os novos marketplaces.

As próprias empresas de TI do país estão crescendo e se internacionalizando, com serviços ligados à inteligência artificial. E o setor de saúde vem se aperfeiçoando com marketplaces como o do Grupo Fleury para que os pacientes integrem seus dados de saúde lá. Os serviços ligados ao agronegócio também têm avançado.

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Como a sustentabilidade se relaciona com isso?

A necessidade de uma economia sustentável também dará impulso à digitalização do negócios, pois esse conceito de uma economia circular, com reciclagem, recuperação de materiais, se beneficia da possibilidade de fazer rastreamento das coisas e gerenciar a cadeia logística de reprocessamento.

O Brasil é um bom adopter, e as coisas aqui se difundem rapidamente. Só é preciso cuidado para que a inteligência gerada pelas novas iniciativas também seja internalizada pelo país.