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Economia

'Atitudes hostis mataram o debate. O Mercosul está adormecido', diz chanceler da Argentina sobre o Brasil

Felipe Solá, que está no Rio para evento de agência que atua na área nuclear, responsabiliza Guedes pela rigidez do país nas negociações do bloco
O chanceler argentino, Felipe Solá, atribui ao ministro Paulo Guedes a "rigidez" do governo Jair Bolsonaro nas negociações Foto: Chancelaria argentina/ Divulgação
O chanceler argentino, Felipe Solá, atribui ao ministro Paulo Guedes a "rigidez" do governo Jair Bolsonaro nas negociações Foto: Chancelaria argentina/ Divulgação

Com a praia de Ipanema como pano de fundo, o ministro das Relações Exteriores da Argentina, Felipe Solá, refletiu sobre a atual crise em que está mergulhado o Mercosul e assegurou, em entrevista exclusiva ao GLOBO, que o ministro Paulo Guedes é o responsável pela "rigidez" do governo Jair Bolsonaro nas negociações.

A principal divergência no momento é a defesa do Brasil de uma redução de 10% da Tarifa Externa Comum (TEC, que taxa produtos de fora do bloco) sobre 100% dos produtos de forma imediata (a Argentina aceita incluir apenas 75%) e um segundo corte no final do ano (os argentinos não querem voltar a discutir o tema até 2023).

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—  O ministro Guedes acha que vai conseguir baixar os preços no Brasil reduzindo 10% a TEC... já passamos por isso e não queremos mais seguir esse caminho —  enfatizou Solá, lembrando a política econômica da última ditadura argentina (1976-1983) e da década de 1990.

O chanceler argentino está no Rio para comemorar os 30 anos da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (Abacc).

Qual é a importância desta visita ao Brasil, em meio a uma crise delicada no Mercosul, com especulações até mesmo de ruptura do bloco?

Vamos comemorar os 30 anos da Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares e é importante pensar por que essa agência tem uma enorme relevância no mundo, no mundo dos países que podem enriquecer urânio, que são em torno de 20. Por que comemoramos tanto? Porque foi uma ideia bem-sucedida. E por que foi bem-sucedida? Porque a base dessa ideia foi a confiança no futuro das duas nações e a decisão muito forte de abandonar qualquer ideia de tensão geopolítica entre a Argentina e o Brasil.

Tensão militar...

Militar, armamentista, nas fronteiras, etc... Foi um controle mútuo, com tudo o que significa a confiança no outro. Começou a haver respeito em ambos países sobre suas capacidades de desenvolvimento nuclear e temos vários projetos muito importantes. Com base nessa confiança, tudo era possível.

O que nós conseguimos nenhum outro país do mundo conseguiu. A pergunta que eu faria é: seria possível fazer uma Abacc hoje? Não, não poderíamos porque rapidamente surgiria uma desconfiança natural, se ideologizaria o tema, e sobretudo porque nós sentimos que as autoridades brasileiras não sentem o Mercosul como nós, e não pensam o futuro como nós, que vemos um futuro tão definido pelo Mercosul.

E, se não se sente, se politicamente não existe afeto pelo Mercosul e do que se trata é manter as formas, um avanço espetacular na integração, como foi a Abacc, seria impossível. Toda ideia conjunta sobre o futuro do Mercosul está em dúvida, basicamente pelo Brasil, e em menor medida pelo Uruguai.

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A última cúpula presidencial deixou no ar uma dúvida sobre como o Mercosul vai continuar com tantas divergências internas.

A Argentina está atuando como alguém que quer preservar um casamento, apesar do que os outros fazem. Mas não uma ficção, um casamento, porque temos a lembrança de uma vida feliz. Não houve acordo na cúpula, mas a Argentina fez um esforço enorme durante um ano e meio e se aproximou da proposta brasileira de redução da Tarifa Externa Comum. Mas nos deparamos com atitudes muito duras.

Por parte do Brasil?

Sim. A exceção passamos a ser nós, que não queríamos baixar a TEC, e não os outros, que queriam fazer algo sem consenso e que viola normas do bloco. Diziam que nos davam permissão para não baixar, mas em todo caso o waiver (perdão) deve ser dado a quem não cumpre o Tratado de Assunção (ata de fundação do Mercosul).

A Argentina fez todo o possível e vai continuar fazendo, mas obviamente as leis são as leis. Houve uma negativa do Ministério da Economia do Brasil para conversar com o Ministério da Economia argentino, uma atitude muito negativa.

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Do ministro Paulo Guedes?

Sim. E, finalmente, houve uma confirmação sincera [por parte do Itamaraty] de que a posição do Brasil é a posição do ministro Guedes. Isso me foi dito de forma explícita. O ministro Guedes acha que vai conseguir baixar os preços no Brasil reduzindo 10% a TEC.

Acha que baixando o preço dos produtos importados os produtores brasileiros serão obrigados a baixar os preços. Temos muita experiência em inflação, experiência ruim, e vimos essa situação em 1976 com José Alfredo Martínez de Hoz [ministro da Economia da última ditadura argentina], e também em 1991/1992 com Domingo Cavallo, em menor medida.

Trabalha-se com a base de que todos os que estão produzindo podem ser mais exigidos, como se o Estado tivesse o direito permanente de duvidar da rentabilidade dos empresários. Busca-se obrigá-los a uma eficiência maior, com o custo de ter mais desemprego, fechamento de empresas etc... Já passamos por isso e não queremos mais seguir esse caminho.

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O Brasil assumiu a presidência pro tempore do bloco pelos próximos seis meses. Os países vão continuar discutindo, ou a Argentina teme que o Brasil adote medidas unilaterais de redução da TEC?

Nesses seis meses o Brasil deveria fazer coisas importantes no Mercosul, como um passaporte sanitário. Fazer propostas para melhorar a situação. Sobre a redução da TEC, sim, todas as informações que temos indicam que existe uma discussão interna no Brasil, mas que se sentem ([o governo Bolsonaro] com direito de avançar [sem consenso].

Não sabemos se o farão, mas se o fizerem vamos manter nossa posição. O Brasil defende cortar a TEC sem ter mecanismos de controle do impacto dessa medida sobre os setores produtivos de nossos países, não leva em consideração a opinião de sua indústria e das indústrias dos demais países.

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Em seu discurso na cúpula, Bolsonaro disse que o Brasil tem pressa.

Claro, mas é uma pressa política. Pensar que isso vai modificar drasticamente a situação do consumidor brasileiro... eu não estou de acordo.

Existe uma expectativa por parte da Argentina de que, caso o Brasil avance unilateralmente numa redução da TEC, ocorra uma reação interna, por exemplo, por parte de empresários ou do Congresso brasileiro, como fizeram os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva?

Podemos consultar os setores produtivos, políticos, empresariais e acadêmicos, é parte de nossa vida comum. Mas daí a fazer especulações existe uma distância.

Como o senhor definiria hoje a relação entre Brasil e Argentina?

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Nossa relação com o Brasil é a mais importante de todas as que temos no mundo, por multiplas razões. É nosso principal comprador, sobretudo pelo tipo de produtos que compra. Somos vizinhos, tivemos uma ilusão que não vai morrer, precisamos do Brasil e queremos que precisem de nós.

O problema é a visão econômica e uma atitude do Brasil que leva à ausência de debate. Porque com o Chile temos uma visão diferente, mas uma ótima relação. Com o Brasil não há debate, conversas entre ministros, debates acadêmicos, entre empresários, sindicatos, debates francos, tudo isso é impensável. É como se a sociedade não existisse.

Porque o Brasil tem uma posição personalizada num grupo de economistas que controla o Ministério da Economia. As atitudes hostis mataram o debate. Quando não há affectio societatis [intenção dos sócios de construir e permanecer numa sociedade], todo o resto fica imobilizado. O Mercosul está adormecido.

Quando o senhor fala em atitudes hostis se refere ao ministro Guedes e ao presidente Bolsonaro?

As coisas começaram mal, com declarações negativas inesperadas para nós, com acusações a como tinham votado os argentinos, nunca pensamos que isso podia acontecer. Depois fomos nos acostumando e finalmente a única coisa que queríamos era não ser insultados. Nos acostumamos a negociar apesar das circunstâncias, e continuaremos tentando negociar. Se o ministro Guedes quiser negociar conosco estamos abertos. Agora, se quer impor sem negociar, isso é outra coisa.

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A sensação na Argentina é de que o ministro Guedes acabaria com o Mercosul, se pudesse?

Isso quem deve responder é o ministro Guedes, e pediríamos que fosse sincero. Declarações devem ser fundamentadas e respeitar o esforço de 30 anos de quatro países. Somos circunstâncias passageiras.

A chegada de Carlos França ao Itamaraty permitiu uma recomposição. É apenas uma fachada?

A chegada de França levou a relação a termos racionais, agradáveis, que leva em consideração a História. Mas atrás disso existe uma posição rígida da equipe econômica.

Observando o cenário regional, hoje dá a sensação de que a Argentina tem um melhor vínculo com os EUA de Joe Biden do que o Brasil.

A Argentina melhorou sua relação com os EUA desde a chegada de Biden, sem dúvida. Claro que respeitando nossas diferenças. Sentimos que nos EUA existe um respeito pela identidade de cada um. O Brasil é um país tão importante e acho que existirá um esforço de ambos os países por ter relações mais sólidas. Ninguém pode se dar ao luxo de não ter relações com os EUA ou com o Brasil. Não especulamos sobre essa relação, acreditamos que será o que sempre foi, forte.