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Economia

Ausência de declaração final em cúpula mostra que Mercosul chegou a seu pior momento

Bloco poderia adotar ‘waivers’ para negociação com terceiros, diz especialista. Setor produtivo defende integração regional
Cúpula do Mercosul terminou sem declaração final Foto: Esteban Collazo / AFP
Cúpula do Mercosul terminou sem declaração final Foto: Esteban Collazo / AFP

RIO E BRASÍLIA - A última cúpula de chefes de Estado do Mercosul terminou sem declaração final. Um fato inédito nos 30 anos do bloco, completados em março, que mostra a profundidade da crise. Os caminhos para o Mercosul a partir de agora, afirmam especialistas ouvidos pelo GLOBO, não são simples.

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Segundo confirmaram ao GLOBO fontes de governos que participaram da cúpula, o Uruguai se negou a assinar um texto que não incluísse sua visão sobre a necessidade de flexibilizar a dinâmica das negociações comerciais externas.

A Argentina propôs, então, um documento firmado pelos outros três países, mas o Brasil defendeu que, entre duas opções ruins, era melhor não haver declaração.

Como serão superadas as tensões é uma pergunta que os negociadores do bloco não sabem responder. O Brasil se opôs a uma declaração firmada apenas por três membros porque, segundo uma fonte do governo, “seria um sinal péssimo para o Mercosul”.

A Argentina pressionou, na tentativa de isolar o Uruguai, mas só conseguiu a adesão do Paraguai.

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Além disso, agora que o Brasil assumiu a presidência pro tempore do bloco, a Argentina teme que o governo Jair Bolsonaro aproveite para avançar unilateralmente na redução da Tarifa Externa Comum (TEC, que taxa produtos de fora Mercosul).

Um caminho para superar os problemas, dizem especialistas, é continuar insistindo em que o bloco autorize negociações caso a caso, ou seja, uma espécie de waiver , ou exceção.

Uma fonte do governo brasileiro lembrou que, no âmbito da Associação Latino-Americana de Integração (Aladi), os países do Mercosul já negociam individualmente com outros parceiros da região.

Com o México, por exemplo, o Uruguai já fechou um tratado, e o Brasil negocia a eliminação ou redução de tarifas de importação para cerca de 800 itens.

— A cada ano que passa temos mais exceções. O ideal seria renegociar o Tratado de Assunção, mas não existe clima pra isso. Se prevalecer o bom senso, deveriam ser negociados waivers , para que cada país possa avançar, e os demais, quando se sentissem prontos, se uniriam — diz Sandra Rios, do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento.

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Para ela, “a história do Mercosul é uma história de flexibilizações”:

— Não é o caso de implodir o Mercosul, mas não parece aceitável congelar uma estrutura negociada há 30 anos e que tem demostrado sua inadequação.

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Para o consultor internacional Welber Barral, o anúncio feito na quarta-feira pelos uruguaios, de que vai negociar com terceiros, pode trazer consequências políticas e econômicas.

Ele defende que as negociações em separado sejam autorizadas caso a caso e diz acreditar que a Coreia do Sul pode ser o primeiro país de fora da região a ter um acordo com apenas um membro do Mercosul.

O superintendente de Desenvolvimento Industrial da Confederação Nacional da Indústria (CNI), João Emilio Gonçalves, defende que os membros do Mercosul caminhem “alinhados estrategicamente”:

— A flexibilidade negociadora, em grande medida, já está presente no âmbito do Mercosul. Por exemplo, na negociação dos acordos com Israel e Egito, os integrantes do bloco tiveram ofertas e tempos diferentes para redução de tarifas.

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Já o presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), José Augusto de Castro, considera que não haveria impacto significativo se o Uruguai negociasse com outros mercados, porque se trata de um mercado muito pequeno para o Brasil.

Em uma avaliação reservada, integrantes do governo brasileiro afirmam que a decisão do Uruguai é conveniente para o Brasil: o país vizinho pode levar à abertura de um precedente e soltar as amarras do Mercosul.

Mas, para os empresários brasileiros, qualquer alteração no Mercosul deve vir acompanhada da queda do Custo Brasil. Este foi uma promessa feita pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, ao setor produtivo nacional e será cobrada.

— O apoio do Brasil a essa proposta é um grave equívoco, principalmente nesta fase em que assistimos o fechamento de fábricas e a redução da participação da indústria até mesmo no mercado interno — afirma Gonçalves, da CNI.

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Bandeiras dos países integrantes do Mercosul Foto: Reprodução
Bandeiras dos países integrantes do Mercosul Foto: Reprodução

O consultor de comércio exterior Ivan Ramalho, ex-representante geral do Mercosul, questiona o fato de o Brasil não ter feito a chamada lição de casa, que incluiria uma reforma tributária, ajuste fiscal, desburocratização. Ele considera equivocado o apoio do Brasil ao Uruguai.

Dados do Ministério da Economia mostram que o Mercosul é amplamente vantajoso para o Brasil e o maior mercado de destino das vendas de industrializados. Nos seis primeiros meses de 2021, o fluxo de comércio (soma de exportações com importações) do Brasil com os demais países do bloco aumentou 44,1%, uma das maiores taxas de crescimento no período.

A maior parte dos produtos exportados para o bloco, inclusive o Uruguai, foi de manufaturados, como automóveis, autopeças, calçados e papel. Os uruguaios fornecem ao Brasil, principalmente, alimentos (carne bovina, farinhas, leite e derivados) e energia elétrica.

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O Mercosul, afirma Luiz Carlos Prado, professor do Instituto de Economia da UFRJ, :é um processo profundo de integração, e uma decisão de Estados que não pode simplesmente ser desconstruída”:

— Faz sentido rediscutir relações econômicas internacionais, mas não desta maneira. Vamos reduzir a TEC para quê? O que vamos ganhar? Falta um estudo de impacto. O protecionismo está voltando no mundo, e não podemos cair num liberalismo fora do seu tempo.

Mas, na visão de uma fonte uruguaia, na última cúpula o Mercosul ficou nu, como o rei no conto do escritor dinamarquês Hans Christian Andersen.