FUNDÃO, PORTUGAL - Sem a pressão da especulação imobiliária e da escassez de empregos das grandes cidades, cada vez mais brasileiros descobrem a possibilidade de ter mais espaço para trabalhar e viver com mais qualidade e menos custos no coração de Portugal.
O GLOBO percorreu alguns desses pequenos oásis despovoados que desenvolvem estratégias econômicas para atrair e manter empreendedores e profissionais em meio a um novo plano do governo português para atacar o crônico problema demográfico do país.
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A paisagem do Fundão muda radicalmente de acordo com as estações. As encostas são pintadas de branco no início da primavera e o visual ilude o visitante desavisado, como se as árvores fossem polvilhadas por flocos de neve.
Mas é na verdade o espetáculo natural das cerejeiras em flor. Quando chega o inverno, há a chance real daquele branco ser a neve que cai na Serra da Gardunha.
Assim, a população se adapta às alterações do tempo. Como o mercado de trabalho na região, que se transforma com o impacto da tecnologia nas tarefas do campo.
Com as mudanças, chegam empreendedores brasileiros como David Carvalho. Ele é sócio da Lusobrasileira Veracruz, empresa que investiu € 50 milhões na plantação de mais de três milhões de amendoeiras em dois mil hectares de terrenos no Fundão e no município vizinho de Idanha-A-Nova.
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— Mudei para Portugal no ano passado. Saí de um escritório em São Paulo para a fazenda, para o meio do campo — conta o empresário.
O empreendimento foi classificado como Projeto de Potencial Interesse Nacional (PIN), previsto num decreto do governo de Portugal que facilita trâmites administrativos e oferece acompanhamento permanente de uma comissão que auxilia e agiliza o cumprimento das etapas burocráticas e legislativas.
A primeira colheita começou em outubro, um ano antes do previsto. Carvalho, que é mineiro, explica que o investimento foi possível após ele vender empresas de tecnologia e software de segurança no Brasil.
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A bagagem adquirida no setor ele levou para o campo, onde impera a agricultura de precisão, inteligente, o mais autônoma possível e com base em um detalhado processamento de dados.
— Eu vi a oportunidade rentável de entrar no agronegócio. Como sou da área de tecnologia da informação, levei essa experiência comigo, para o smart farming , que é a transição para o agronegócio tecnológico, o agrotec. O uso da tecnologia no campo aumenta a produtividade, reduz insumos e aproveita melhor recursos como água e solo com o monitoramento constante — explica Carvalho.
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A produção de amêndoas será exportada para Brasil, parte da Europa e Estados Unidos. Segundo ele, o Brasil não tem clima propício para esta atividade. A empresa contratou 30 funcionários, muitos brasileiros que chegaram a Portugal durante a pandemia.
Para replicar o conhecimento, Carvalho diz ter assinado com a prefeitura do Fundão um protocolo de intenções para promover o uso de novas tecnologias no campo e servir como um grande laboratório para engenheiros e start-ups que queiram se instalar no Fundão.
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A cidade pretende ser a primeira com uma sólida base de Internet das Coisas (IoT, na sigla em inglês) rural.
— Fomos muito bem recebidos pelo prefeito, que é pragmático e quer atrair talentos para fomentar a economia em uma cidade pequena — diz Carvalho.
Entusiasta da imigração, licenciado em Relações Internacionais pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, Paulo Fernandes, prefeito do Fundão, abriu a porta da Europa para as empresas brasileiras justo quando a nova onda de imigração para Portugal recomeçava, no fim de 2016.
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Ele fez uma parceria com a Universidade de Campinas (Unicamp), no interior de São Paulo, para criar um centro de apoio a novos negócios.
Como nenhuma empresa sobrevive sem funcionários, foi além: decidiu pagar parte do aluguel das casas e apartamentos de quem fosse contratado para viver na cidade durante um ano. Desde então, dezenas de brasileiros passaram pelo programa.
— Um apartamento de dois quartos em Lisboa pode custar € 1 mil por mês. No Fundão, sai por €350. E nós ainda financiamos €150 ou €200 por mês durante um ano — afirmou Fernandes ao GLOBO.
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A prefeitura também reduz taxas e licenças de impostos municipais para quem investe na compra e recuperação de casas no centro da cidade e as põe para alugar. Outro ponto importante é a requalificação para o mercado de trabalho através de projetos como a Academia do Código, que ensina a programação de softwares .
— Já tivemos pessoas do Brasil em formação e outras dezenas estão a trabalhar nas empresas de TI. Nós precisamos que venham para cá viver, precisamos de imigração. Em momentos de crise como este, temos que ser mais solidários e mais colaborativos em escala mundial. Não podemos nos fechar — empolga-se o prefeito.
Funcionário concursado do Banco do Brasil, Adriel Oliveira pediu uma licença e foi empreender fora do país. Passou um período de imersão no Vale do Silício, na Califórnia, e em Nova York até chegar a Portugal e obter um “start-up visa”.
Instalou no Fundão a fábrica da Shimejito, empresa que vende e faz do próprio consumidor um produtor de cogumelos.
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— A prefeitura do Fundão acolheu o projeto como inovador para o município, deu apoio estrutural e ajudou na conexão com o ecossistema local — afirma o empreendedor, que diz que a empresa foi avaliada € 1,6 milhão em uma rodada de investimentos em outubro.
Por ter sido contemplada pelo “start-up visa”, a empresa tem incentivos para criar 20 vagas em Portugal até 2023, sendo oito no Fundão. E recebe benefícios fiscais nos primeiros anos no país.
— Vivo no Fundão, onde o pessoal dá bom dia, e a regra é a da confiança, não da desconfiança. Não planejo voltar ao banco, no Brasil, como concursado. Passei um ano revendo minha estratégia de carreira para criar a Shimejito, uma start-up da vida real, de economia circular e com novas formas de emprego e trabalho — resume Oliveira.
*Especial para O GLOBO