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Economia

Com aval de Bolsonaro, pesos pesados da indústria 'caçam' vacinas para acelerar retomada da economia

Para especialistas, ação de empresários reflete desarticulação do governo e pode ser questionada juridicamente
Empresas buscam alternativas no mercado para antecipar a chegada de vacinas ao país Foto: AFP
Empresas buscam alternativas no mercado para antecipar a chegada de vacinas ao país Foto: AFP

RIO e SÃO PAULO - Convencidos de que o único caminho para a retomada da economia é a vacinação em massa, um grupo de empresários que representam 15 setores produtivos, 45% do PIB industrial e 30 milhões de vagas entre empregos diretos e indiretos, saiu a campo para tentar aumentar rapidamente a quantidade de imunizantes no país.

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Eles têm procurado farmacêuticas e fundos de investimento em busca de doses disponíveis. As empresas da cadeia de imunização e seus acionistas negam ter tido contato com os empresários, mas a chamada Coalizão da Indústria, que conta com o aval do governo Jair Bolsonaro em sua estratégia, afirma que vai insistir na compra do produto.

Nesse grupo de pesos pesados do PIB industrial, estão segmentos como aço, máquinas e equipamentos, elétrica e eletrônica, vestuário, plásticos e construção civil, entre outros. Um pool de 20 empresas encabeça as negociações.

Os empresários dizem abertamente e em conversas reservadas que negociam com fundos de investimento que apostaram no desenvolvimento da vacina da AstraZeneca e que, em razão desse aporte, teriam direito a um volume de 33 milhões de doses que não estariam disponíveis para a venda a governos ou a laboratórios.

O discurso repetido por empresários dos mais variados setores evidencia que as empresas temem o dano de imagem de serem vistas como fura-fila, com a preferência a seus funcionários, no momento em que a vacinação dá os primeiros passos no país.

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Mas consideram que o dano de ficar sem vacina pode ser ainda maior.

— Há duas condições para que essas doses sejam transacionadas: elas não podem ser vendidas para governos nem para quem vá comercializá-las. Com isso, são doses que não estão ao alcance do SUS, via aquisição pública, nem de laboratórios — explicou José Carlos Martins, presidente da Câmara Brasileira da Indústria da Construção (Cbic).

Vacinação antecipada

Segundo José Velloso, presidente da Abimaq (associação de máquinas e equipamentos), se a negociação for bem-sucedida, o primeiro lote poderia chegar ao país na primeira quinzena de fevereiro:

— Não é tentativa de furar fila, mas de acelerar. O grupo prioritário a ser imunizado e definido pelo governo demanda 30 milhões de doses. Até o fim de março, o país terá apenas 20 milhões. Se trouxermos as vacinas, o primeiro lote chegaria em fevereiro. Cobriria o que falta e anteciparia a vacinação desse primeiro grupo em um mês.

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Segundo os empresários, as primeiras conversas teriam sido travadas com a indiana Bharat Biontech, que produz a Covaxin, que ainda não foi aprovada pela Anvisa. Em razão do preço, líderes de associações empresariais afirmam que as conversas migraram para a AstraZeneca.

Segundo Martins, da Cbic, um outro grupo de empresas teria se reunido na semana passada com a Pfizer, mas qualquer acordo dependeria de uma autorização do governo.

Profissional de saúde mostra ampola com vacina contra a Covid Foto: AFP
Profissional de saúde mostra ampola com vacina contra a Covid Foto: AFP

Até agora, a empreitada dos empresários esbarra em negativas de todos os lados. Farmacêuticas, como a AstraZeneca, negam qualquer negociação. O BlackRock, acionista da empresa, nega integralmente a história. E o governo diz que não foi ele a tomar a iniciativa, apenas deu aval ao projeto dos empresários.

Segundo fontes próximas à BlackRock, não houve qualquer reunião no Brasil ou nos EUA com empresários brasileiros. As fontes afirmam que não procede que o fundo tenha direito a um lote de vacinas por se tratar de mero acionista, sem ter participado de qualquer financiamento para desenvolver o imunizante.

Em nota oficial, a BlackRock afirma que não tem nenhum acordo com fornecedor de vacinas contra a Covid para adquirir doses e que nunca se envolveu em quaisquer discussões relacionadas com o esforço das empresas brasileiras para comprar o imunizante. "Autoridades em todo o mundo já alertaram para esquemas relacionados com a suposta comercialização de vacinas, e é importante que as empresas e os governos se mantenham vigilantes", afirma a empresa.

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A fragmentação já existe no próprio grupo. Desde que a iniciativa veio a público, uma série de empresas afirmou ter sido sondada, mas ter abandonado o projeto. Em nota oficial, o governo diz apenas que exigiu que 50% das vacinas fossem doadas ao SUS e que elas não fossem comercializadas, usadas apenas na imunização de funcionários.

Em conversas reservadas, parte dos executivos defende a doação de no mínimo 50%, e outros falam em 66%. Como não prosperou a hipótese de doar 100% ao SUS, parte das companhias desistiu de apoiar o projeto.

Entre negativas e confirmações, alguns setores já começam inclusive a mensurar quantos funcionários precisariam ser vacinados. Na terça-feira, a Cbic reuniu associados e pediu que todos levantassem o número de doses necessárias para cobrir os trabalhadores da construção civil.

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Até agora, o somatório indica 1,2 milhão de doses. Metade delas iria para o SUS. Como cada pessoa precisa receber duas doses, seriam vacinados 300 mil trabalhadores do setor.

— Fomos acusados de furar a fila da vacina. Mas é o contrário. Vamos acelerar a fila. Vamos doar ao SUS vacinas às quais o governo não teria acesso e reduzir a pressão da fila. A economia precisa voltar a rodar. Os auxílios serão suspensos. Precisa haver combustível na economia para gerar renda e ter condição de vacinar a todos — disse Martins, que acrescentou: — A última medida provisória coloca como prioridade trabalhadores da construção civil e da indústria.

Sem doação integral

Humberto Barbato, presidente da Abinee (associação da indústria elétrica e eletrônica), diz que o segmento apoia majoritariamente a proposta, segundo ele encabeçada pela Gerdau e pelo Instituto Aço Brasil. A Abinee representa 400 das 1.500 empresas do setor, que emprega ao todo 250 mil pessoas.

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— A grande maioria das empresas do segmento tem apoiado a proposta. O preço de aquisição por dose é de US$ 23,79. Algumas companhias acharam que não era conveniente porque interpretaram que reter doses poderia ser furar a fila, mas a maioria aderiu — afirmou.

Perguntado sobre o motivo de as empresas não doarem 100% das doses, Velloso, da Abimaq, disse que as pequenas não teriam como arcar com esse custo:

— Existe o possível. E existe o razoável. As empresas pequenas e endividadas não vão doar mais do que 50%. Se é para doar tudo, melhor criar imposto a ser dividido por todos.

José Ricardo Roriz, presidente da Abiplast e vice-presidente da Fiesp, disse que cerca de 200 indústrias do setor plástico já manifestaram interesse em entrar na lista de financiadoras da aquisição, caso ela se concretize:

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— A maioria das empresas que se interessa é de médio ou grande porte. As pequenas não têm recursos na crise para isso, infelizmente.

Ação reflete falta de articulação do governo

Para analistas, a tentativa das empresas de encontrar vacinas disponíveis no mercado para rápida aquisição é um retrato da falta de articulação do governo na condução do combate à pandemia e início da vacinação.

Segundo o jurista e professor de Ética da Unicamp  Romano, esse quadro levou a iniciativa privada a improvisar na busca por acelerar o processo:

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— Essa situação do Estado tem consequências econômicas. As empresas, que precisam de mão de obra e de consumidores, têm apelado em vista dessa situação de extrema necessidade, o que é juridicamente defensável, dado o caráter de excepcionalidade.

O especialista pondera, porém, que é preciso ter critérios definidos, pois uma entrada indiscriminada do setor privado poderia gerar alta de preços do imunizante.

— Dizer que reter 50% das doses é furar a fila de vacinação é precipitado. Se as vacinas forem remetidas ao SUS, boa parte chega ao destino correto devido aos servidores da saúde. Mas logo no início da vacinação já houve situações de gente furando a fila — disse.

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Para Wallace Corbo, professor da FGV Direito Rio, em um cenário de escassez de vacinas, a iniciativa das empresas resulta em risco de judicialização, pois pode ser entendida como desrespeito aos grupos prioritários:

— O governo pode ser questionado por juízes e pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao dar aval a uma ação que vai imunizar pessoas fora dos grupos prioritários. A compra em si pode ser diretamente questionada. Se efetivada, pode ser alvo de requisições administrativas quando as doses chegarem ao país.

Para o economista e professor do Insper Thomas Conti, a ausência de informações sobre o fornecedor da vacina e a disparidade de preço em relação ao custo do imunizante para governos colocam em xeque a factibilidade do negócio.

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— Esse preço de US$ 23,79 é cinco vezes superior ao que foi pago pela África do Sul e muito superior ao preço que será pago pelo governo brasileiro pelo mesmo imunizante (de US$ 2 a US$ 4). Não está claro quem venderia — afirmou.

Conti questiona a disponibilidade de imunizantes, uma vez que a própria União Europeia, que financiou o desenvolvimento da vacina, tem cobrado publicamente a AstraZeneca. A farmacêutica nega qualquer tipo de conversa com empresas brasileiras.

—Se existirem vacinas para pronta entrega, o lógico é o governo brasileiro comprar, e há recursos para isso — disse, lembrando que o preço não tem paralelo com o praticado.